sábado, 14 de fevereiro de 2009

No Cáis de San Blás

Ele se levantou da cama e pôs os pés sobre o chão gelado. Vestiu a camisa branca puída e jogou o casaco surrado por cima. Calçou os sapatos pretos que estavam ao lado da cama. Ela, do outro lado do cômodo, olhou para ele e sorriu, fazendo barulho com a panela que preparava para esquentar água.
Pela única janela, podia-se ver que o sol ainda não tinha lançado nenhum raio e a neblina densa cobria toda a extensão da rua que dava no porto. Tomaram o café silenciosos. Ela encarava-o com os olhos brilhando, um misto de amor e devoção.

- Você precisa mesmo ir? - perguntou ela com a voz embargada.
- Você sabe que sim, não podemos mais morar nessa espelunca. Mais três meses no máximo e conseguimos juntar o dinheiro para nos mudarmos daqui. - respondeu ele sem olhar para a mulher, mordendo novamente o pedaço de pão seco que comia e observando a janela.
- Mas nós estamos bem aqui. Você sabe como eu morro de medo quando você viaja em dias assim.
- Não seja tola. Dias assim são os melhores. Os peixes nadam mais na superfície porque a água fica gelada por aqui também.
- Tudo bem, mas é muito mais perigoso. Quero dizer, essa região é muito cheia de pedras.

A chama da pequena vela já quase no fim apagou-se com um sopro de ar gelado que entrou por entre as frestas da porta velha. Ela puxou o xalé sobre os ombros. A peça destoava do casal e da casa. A lã macia e amarela estava nova, presente de uma mulher para a qual ela trabalha há alguns anos. Levantou-se lentamente e levou as duas canecas para a pia. As paredes escuras eram opressivas, mas ela tentava disfarça-las, trazendo flores colhidas no caminho do porto até a casa.

- Eu vou até o porto com você.
- Não precisa, está muito frio. E ainda nem amanhaceu.
- Mas eu quero. - respondeu ela rapidamente.
- Que seja mulher, você está estranha hoje. - riu-se o marido indo até a porta e abrindo para que ela passasse.

Saíram da casa sem trocar palavras. Percebia-se que o vento gelado a fazia tremer um pouco, mas ela ignorava. Caminhou ao lado dele até chegarem no porto. Lá o silêncio era cortado pelo grito dos homens jogando seus equipamentos no pequeno barco pesqueiro. Gritavam e riam como se continuassem bebendo desde a noite anterior.
Algumas prostitutas ocupavam um ou outro espaço entre as cargas, rindo e se oferecendo para os pescadores. Instintivamente ela se abraçou nele, difícil dizer se para se esquentar ou para mostrá-las de que aquele pescador tinha uma esposa. Depois de algum tempo arrumando os últimos detalhes ele voltou para o banco onde ela ficara esperando e abraçou-a. Ela chorou.

- Eu vou voltar! Não chore, por favor, eu juro que vou voltar! - o vento forte bagunçava seu cabelo negro, enquanto ele tentava fazer com que ela parasse de chorar.
- E eu juro que vou te esperar. Pelo tempo que você ficar no mar eu vou esperar.

Ele desenlaçou-a de seus braços e saiu para a estreita passarela de madeira que saia ao barco. Haviam várias daquela no porto. De algumas restava apenas a estrutura. Diziam que quando um barco não voltava do mar a plataforma da qual ele saíra estava condenada. Ela esperou o barco soltar as amarras e correu pelas tábuas de madeira até o fim da passarela. Acenou para ele por muito tempo, até que o barco se tornasse um ponto no horizonte.

Ela voltou pra casa de cabeça baixa. As ruas que circundavam o cáis eram estreitas e as casas, geralmente sobrados, eram velhas e se projetavam para rua, dando uma impressão de que o caminho era ainda mais apertado. Almoçou e jantou sozinha durante os cinco dias que ele ficaria no mar, mas toda tarde ia até o cáis e sentava-se na plataforma de madeira.
Como era de hábito, usava sempre o mesmo vestido branco que vestira no dia em que ele zarpou. Assim, acreditava ela inocentemente, ele conseguiria a reconhecer de longe, mesmo com outros mulheres e prostitutas que estivessem por perto.

Mas o quinto dia chegou e se foi. E o barco não chegou naquela tarde. Sentada no cáis, ela não se mexeu. Continuou esperando até o dia amanhecer novamente. Pequenos caranguejos brancos subiam pela madeira e alcançavam a barra do vestido da jovem, arrancando-lhe algumas linhas e desfazendo a renda. No meio da manhã a fome foi mais forte do que a vontade de ficar ali, e ela voltou para casa.

Durante a tarde, porém, voltou para o porto e sentou no mesmo ponto que ocupara na noite anterior. Mas o barco também não chegou aquele dia. E o que a princípio era uma opção da mulher tornou-se uma obrigação. Saia de casa todos os dias no meio da tarde e corria ao porto sentar-se na última tábua da passarela de madeira. Enquanto ficava lá, observou outra estrutura de madeira ser erguida alguns metros daquela na qual estava.

A semana terminou, e a próxima também, e depois o mês. Ela, contudo, não falhava um dia em sua solitária rotina. Sentava-se e esperava até o meio da noite. De repente, parou de trabalhar pelas manhãs. Preferia ficar em casa e arrumá-la para quando o marido voltasse. Precisava ter cuidado para não perder o horário do barco. Algumas pessoas tentaram convencê-la a parar de esperar, mas ela ria:

- Não. Eu sonhei que ele ia voltar hoje a tarde.
- Mas já faz mais de seis meses! Você não pode continuar vivendo assim.
- Claro que posso. Porque ele jurou que ia voltar, e eu sei que vai voltar. E vai ser hoje. O que você acha dessa flor? Vou prendê-la ao cabelo para agradá-lo.

Mais dias e meses se passaram. Aos poucos ela emagreceu. Continuava a usar o mesmo vestido branco todas as tardes. A barra já estava completamente estragada pelos caranguejos, e o branco fora substituído por um tom amarelado que escurecia até o marrom no que restara da barra. Paulatinamente, também, a mulher deixou de conversar com as pessoas. Apenas sorria.

As crianças do povoado acostumaram-se a ir até o porto e tirar algumas tábuas do caminho, fazendo com que ela tivesse que saltar alguns espaços para chegar até o local onde sentava todas as tardes. Enquanto as mulheres do povoado, consternadas, levavam comida e roupas para a casa da "louca do cáis", como começou a ser chamada no meio do segundo ano. Não faltou de ir ao cáis nem mesmo no dia em que o médico que visitava a vila a cada quinze dias tentou explicar-lhe que estava ficando doente.

Os anos passaram e o cabelo da mulher já deixara de ser castanho, mesclando-se a longos fios brancos. O vestido já rasgado em várias partes, era apenas costurado a um novo pedaço de tecido branco. As pessoas nem se lembravam mais ao certo o motivo, mas ela fazia o mesmo caminho todos dias, de sua casa ao porto. Numa tarde de abril, um pequeno furgão branco estacionou próximo ao porto, e dois homens desceram. Caminharam pelas tábuas já meio podres, que rangiam e cediam com seu peso.

- Senhora, gostaríamos de levá-la para um lugar mais seguro. - disse um dos homens.
- Por favor, se a senhora nos acompanhar de bom grado, nem precisaremos colocá-la na camisa. - emendou o outro, segurando o item entre as mãos.

A mulher, porém, não respondeu. Entretanto, quando os homens seguraram-na pelos braços ela começou a gritar e espernear. A população que aglomerava-se próxima ao caminhão começou vaiar os homens. Ela chorava, mas era fraca perto dos dois. Alguns homens que assistiam a cena chutavam a lataria do furgão.

- Soltem a louca do cáis. - gritava a multidão que cercava o furgão. - Ela nunca nos atrapalhou! DEIXEM ELA AQUI!!

A algazarra que se seguiu foi imensa. Os vidros da caminhoneta foram quebrados e os pneus furados. O motorista ainda tentou arrancar, mas levou um soco pelo vidro e perdeu a consciência. Destruíram a maçaneta da porta traseira do furgão e abriram-na. A mulher, ao ver a parca luz do crepúsculo levantou-se. O rosto ainda embanhado em lágrimas. Saiu do furgão, enquanto a população local abria espaço para que ela passasse. Sem dizer uma única palavra ela caminhou de volta ao porto, passou pelas tábuas de madeira e sentou-se no cáis. Olhando fixamente para o mar a espera do barco que ainda não chegara. Naquela noite houve festa no pequeno vilarejo. Mas ela não participou. NO horário habitual voltou a sua casa e dormiu.

Seus cabelos já eram totalmente brancos naquela época. A tarde estava horrível. Chovia a três dias consecutivos. O tempo estava tão fechado que a iluminação das ruas tivera de ser acesa as dez horas da manhã. A tempestade caia forte, e os raios cortavam o horizonte. Independente disso, a mulher saiu de casa com seu vestido branco. A névoa impedia de se ver a um palmo de distância. Ainda assim, ela caminhou até o porto e sentou-se no mesmo lugar. as águas revoltas atingiam-na a face, mas ela não se importava.

Na manhã seguinte, quando as pessoas saíram a rua, boa parte da cidade estava arrasada. Tetos haviam sido arrancados e vidraças foram quebradas pela força do vento. A velha passarela de madeira, contudo, estava intacta. Mas a mulher não voltou naquela tarde. Nem na tarde seguinte. No terceiro dia arrombaram porta da pequena casa na qual a velha morara nos últimos cinquenta anos, mas ela não estava lá. A cidade toda vestiu-se de preto naquela semana.
E o tempo passou mais, e a história da louca do cáis foi contada de geração em geração.
Diziam, por fim, que na tarde daquela tempestade, algumas pessoas viram um pequeno ponto de luz no mar aproximando-se do porto e que o barco de seu marido finalmente conseguira voltar para que ele pudesse buscá-la.



Carl Bloch "Menina no cais" (1885)
Baseado livremente na música "En el muelle de Sán Blás", do grupo Maná

Um comentário:

Goiab'dullah disse...

mirem-se no exemplo daquelas mulheres de atenas!
mt bao o texto nego