quarta-feira, 19 de agosto de 2009

The best is yet to come

** 28 de Outubro de 1964 **

"In other words, hold my hand
in other words, baby, kiss me..."


Eloise, apoiada no piano de calda de madeira escura, terminou a música debruçada sobre o rapaz que tocava o piano. Estava usando um vestido preto, que contrastava com sua pele alva e seus cabelos completamente loiros. Contudo, o jovem - de terno e gravata pretos com camisa branca - olhava mesmo era para sua boca; os lábios carnudos eram realçados por um vivo batom vermelho.

A platéia aplaudiu enquanto um ou outro homem jogava rosas brancas no palco, as quais Eloise recolheu gentilmente e as beijou. Caminhou suavemente até o jovem que havia voltado a tocar no piano e disse em seu ouvido:

- Estarei no meu camarim, passe por lá Mickey. - terminando com um leve beijo em sua bochecha.

O rapaz tocou mais três músicas até que um homem cerca de dez anos mais velho subisse ao palco carregando um saxofone. Ele usava um fraque que havia sido nitidamente cortado anos atrás, quando seu peso provavelmente era alguns quilos menor. Mike levantou-se e andou até o amigo:

- Eric, eu sei que nos tocariamos juntos as primeiras músicas mas, tem como você fazer isso sozinho essa noite? É que...
- Eloise, acertei? - perguntou o homem, já com um sorriso malicioso no rosto.
- Sim.
- Vá lá moleque, eu me viro por aqui. Mas Mike, já te falei para tomar cuidado com isso tudo. Você é novo, chegou em New York há apenas 3 meses. Não se envolva desse jeito com uma mulher quase vinte anos mais velha que você.
- Pode deixar Eric, eu sei me cuidar.
- Só não sei se você sabe cuidar de você estando com ela. - mas Mike já tinha dado as costas. Eric preparou o instrumento e soprou algumas notas como se o esquentasse para o show.

Ao descer do palco Mike recebeu cumprimentos dos homens sentados nas primeiras mesas. O salão era pequeno e forrado em madeira escura. A luz amarela pendia do teto sobre as mesas e dava um ar aconchegante ao ambiente. Especialmente em dias como aquele, em que uma fina camada de fumaça tomava todo o espaço do bar.

-- * --

- Aquela última música foi para mim? - perguntou o rapaz, entrando no pequeno cômodo que servia de camarim para a estrela do show.
- E para quem mais seria? - respondeu Eloise, com a voz docemente grave que lhe era comum.
- Não sei, você sempre anda entre as mesas flertando com os homens.
- Faz tudo parte do show, meu bobo preferido. Porque você acha que aqueles senhores trazem suas esposas a um bar pequeno e cheio de fumaça no meio de Manhattan? Para assistir ouvir algumas músicas e ir embora pensando que estão acompanhados por outra pessoa.
- Mas...
- Sem mais - retrucou, segurando o rosto do jovem entre suas mãos. Aproximando-se lentamente de Mike, beijou-lhe suavemente a boca - você sabe que não tem motivos para ter esse tipo de medo. Já te disse que estou completamente apaixonada por você, Mickey.
- Eu também, mas por favor, pare com essa história de Mickey. É Mike, e você sabe que eu não gosto disso.
- Mas eu gosto de te chamar de Mickey - respondeu movendo a cabeça ritimadamente até tocar novamente os lábios do rapaz.

Se beijaram algum tempo até que duas batidas na porta os interromperam. Eloise empurrou Mike para atrás do vão entre um mancebo com roupas e sua penteadeira. Abriu apenas uma pequena fresta. Mike reconheceu a voz de Luke, o negro que trabalhava como barmen na casa:

- Srta. Eloise, desculpe-me incomodá-la.
- Por favor Luke, não é problema algum. Diga-me, aconteceu alguma coisa?
- Não, apenas vim ver se a senhora já quer que eu a leve ao hotel.
- Sim, quero sim. Dê-me mais uns cinco minutos. Te encontro na saída dos fundos.
- Com certeza senhora, estarei te esperando.
- Obrigada Luke. Mas não se esqueça que é senhorita.
- Desculpe-me. - disse o negro, fechando a porta atrás de si, com cuidado para que não batesse.

Eloise tirou o colar de pérolas do pescoço e o colocou dentro de uma caixa preta sobre o móvel. Fez sinal para que Mike a ajudasse com o zíper nas costas da roupa.

- Obrigada. Agora vire-se, vou tirar o vestido.
- Mas nós já...
- Oras menino, deixe de ser atrevido. Se eu disse para se virar, vire-se! - respondeu rindo. Mike, contudo, obedeceu-a.
- Pronto, passe-me a minha piteira, por favor. Acho que está na minha bolsa aí nesta cadeira.

Somente depois de pegar a piteira de prata dentro da bolsa Mike virou-se para vê-la. Ela agora vestia um outro vestido, também preto com pequenas listras brancas, mas bastante mais folgado do que o do show.

- Você precisa mesmo fumar isso?
- Lógico! Não é pelo sabor, é pelo status.
- Mas ninguém está te vendo aqui.
- Você é novo por aqui. Mas eu vou te ensinar mais uma coisa sobre New York. Se você quer ser famoso nessa cidade, se quer que as pessoas te levem a sério, fume. Fume e beba whisky sempre que tiver qualquer oportunidade. Com licença, meu querido, mas tenho que ir. Luke está me esperando lá fora.

-- * --

** 08 de Novembro de 1964 **

- Não seja tolo, Brian. Eu não pediria para você me trazer a um almoço no restaurante do Ritz se eu não quisesse que as pessoas me vissem com você. - disse Eloise, segurando na mão do homem sobre a mesa.
- Então porque você esperou aquele fedelho entrar no prédio antes de descer do carro. - retrucou o homem. Tinha uma grande cara redonda, e um corpo tão grande e redondo quanto. O bigode fino que usava parecia não encaixar nos traços fortes de seu rosto.
- Porque aquele menino é meu pianista no show que faço todas as noites, e ele é apaixonado por mim. E eu nunca teria nada com um menino daquela idade. Então eu evito encontrá-lo fora do palco.

Antes que Brian pudesse responder qualquer coisa o garçom chegou trazendo os pratos que haviam pedido. O homenzarrão pediu ainda que lhe trouxesse uma garrafa do melhor vinho do restaurante.

- Ontem vi um colar e brincos de diamantes naquela joalheria na 8th Street que eram simplesmente fantásticos. Achei que ficariam perfeitos com aquele vestido vermelho que você me deu semana passada.
- Você os quer?
- Não sei Brian. Você tem me dado tantas coisas nesses últimos meses Acho que não teria coragem de aceitar mas nada de você.
- Mas eu gosto de dar essas coisas. Afinal, eu tenho que ter o direito de dar o que eu quiser para minha futura esposa.
- Claro que sim, seu bobo. Mas... - disse Eloise, com um olhar perdido pelo amplo salão do restaurante.
- Mas o que, Ellie?
- Você sabe. Eu não gosto daqueles homens que andam com você. - disse, apontando discretamente para quatro homens vestidos exatamente iguais, espalhados pelo salão.
- Por favor Eloise. Não vamos discutir isso de novo. Você sabe que quando se atua no que eu atuo nessa cidade você tem que tomar seus cuidados.
- É exatamente esse o problema, Brian. Você já tem dinheiro mais do que suficiente pra gente viver bem. Você podia parar de conviver com essas pessoas da máfia. Não sei, a gente podia se mudar de New York.

Brian olhou para os lados e segurou o pulso de Eloise firmemente:

- Nunca mais fale a palavra máfia. Nunca.
- Desculpe-me - responde, baixando um pouco os olhos - mas é que eu tenho medo que algo te aconteça.
- É justamente para não me acontecer nada que eu tomo esses cuidados.
- Posso te pedir uma coisa, então?
- Claro que sim.
- Eu aceito me mudar para a sua casa, como você havia me pedido. Mas com uma condição: seus capangas não ficam mais lá enquanto eu estiver morando com você. Você pode andar com eles pra cima e pra baixo durante o dia, mas quero eles longe de nossa casa.
- Tudo bem Ellie, tudo bem. O que eu não faço por você?

-- * --

** 14 de Novembro de 1964 **

"Don't you know little fool, you never can win
Use your mentality, wake up to reality..."


Sentada sobre o piano Eloise cantava sem tirar os olhos dos olhos de Mike. O vestido vermelho e o conjunto de brincos e colar de diamantes deixavam-na ainda mais sedutora. Depois da última música, Eloise vez o mesmo ritual de todas as noites, passando pelo beijo na bochecha de Mike e indo para o seu camarim.

- Estou com medo, Mickey. - disparou assim que o jovem entrou em seu camarim.
- Porquê? - respondeu ainda a porta, assustado.
- Não sei se você percebeu um homem que estava na platéia. Sentado numa das mesas ao fundo.
- Acho que eu vi quem era. Mas, porque você está com medo dele?
- Ele é envolvido com a máfia de New York. O Luke me disse que ele não é dos peixes grandes, mas mesmo assim é muito perigoso. E há umas duas semanas ele tem me perseguido. Vem aqui quase todas as noites, me segue nas ruas as vezes.
- Meu Deus! Você quer que eu faça alguma coisa?
- Claro que não, Mickey! Ele é um homem perigoso.
- Grande merda. Não tenho medo de ninguém. Não se ele estiver te fazendo mal.
- Por favor, Mickey. Não sei nem porque eu te contei. Não quero que você faça nada. Você é tolo, um capira do interior. Você não sabe com o que estaria se metendo. - Eloise soltou-se sobre uma poltrona de couro escuro no canto do quarto, algumas lágrimas escorreram de seu rosto.

Mike aproximou da mulher e agachou-se, abraçando-a. Ficaram naquela posição por vários minutos antes de se beijarem.

- Pode ficar tranquila, Eloise. Não vou fazer nada que seja perigoso.

-- * --

** 15 de Novembro de 1964 **

Quando Eloise chegou ao bar Eric estava no palco com seu saxofone. A casa estava cheia e a fumaça que cobria o salão um pouco mais densa, o que dificultava discernir o rosto das pessoas sentadas nas mesas mais distantes. Como de costume, Eloise caminhou vagarosamente até o bar. Mesmo estando ainda sem o vestido que usaria no show aquela noite seu andar atraia a atenção dos homens.

- Uma dose de whisky, Luke, por favor. - disse, apoiando-se no balcão do bar, ainda olhando para as pessoas nas mesas como se procurasse alguém.
- Claro, srta. Eloise.
- Diga-me uma coisa, Luke. Onde está o Mike. Geralmente ele abre no piano, o Eric costuma entrar somente depois de mim.
- Então, o menino não apareceu por aqui hoje. Até estranhei e fui ao apartamento dele, que é aqui perto, mas ninguém respondeu. A vizinha disse que ele voltou tarde da noite ontem, provavelmente depois de sair daqui, e poucos minutos depois saiu de novo.

Eloise não respondeu, apenas pegou o copo e tomou um longo gole do líquido no copo. Depois, sentou-se numa cadeira alta e começou a rodar a pedra de gelo no copo. Seu olhar ainda era perdido entre as mesas.

- Luke, você viu se um homem que sempre senta-se naquela mesa apareceu por aqui hoje?
- Quem? O Brian?
- Esse mesmo, acho que era esse o nome.
- Com certeza o Brian não veio aqui hoje. Não veio, e não vem. - disse o barman calmamente, enxugando um copo com um guardanapo branco que a pouco estava em seu ombro.
- Como assim? - respondeu Eloise subitamente, virando-se para encarar o homem.
- Pois é. Estava no jornal de hoje cedo. A polícia invadiu a casa de uns três mafiosos hoje de manhã, mas parece que quando chegaram na do Brian ele estava morto. Encontraram mais um corpo na casa, mas não divulgaram o nome.
- Que pena. Não foi bem isso que eu tinha planejado.
- Desculpe srta?
- Nada Luke, nada. Estava pensando alto. Por favor Luke, você pode pedir para alguém te substituir no bar algum tempo?
- Sim, Eloise, porque?
- Gostaria que me levasse ao aeroporto.
- Mas... o show.
- Acho que não teremos mais show essa noite.

Dois homens de terno entraram escancarando a porta do bar. Ambos analisavam o local minuciosamente. Eloise percebeu quem eram:

- Mas vamos rápido, te encontro na porta dos fundos.

Saiu rapidamente do bar e entrou pela porta que dava acesso ao seu camarim. Abriu uma grande bolsa e jogou as quatro grande caixas de jóias, os vestidos que usava nos shows e saiu caminhando a passos largos.
Como sempre, Eloise sentou-se no banco de trás do carro e pediu que Luke ligasse o rádio do carro. Depois de alguma dificuldado, conseguiu sintonizar uma estação que tocava Sinatra.

They call you lady luck
But there is room for doubt
As times you have a very un-lady-like way
of running out


domingo, 16 de agosto de 2009

Metros Rasos

Amarrou o pé esquerdo do tênis e se levantou. Apesar de colada no corpo, já estava acostumado com a roupa. Soltou os braços e os balançou, num exercício de relaxamento dos músculos. O silêncio naquele vestiário o acalmava. Pegou uma pequena imagem de sua santa padroeira e encostou sobre a boca, de olhos fechados. Vagarosamente abriu o bolso externo da mochila e a guardou. Três batidas na porta quebraram o silêncio que já durava alguns minutos.

- Alex, tudo pronto aí? - perguntou um homem de cabelos brancos e moleton parado a porta semi-aberta.
- Tá sim. To saindo. - respondeu Alex, fechando a mochila e levantando-se do banco.
- O estádio está lotado hoje. Ouvi dois voluntários, que foram numa reunião da organização hoje de manhã, falarem que é record de público.

O atleta não respondeu. Apenas acompanhou seu treinador pelo longo túnel extremamente bem iluminado que dava para o campo de provas. Olhando para a frente, tinha a impressão de que o túnel era interminável. A luz que vinha da entrada conseguia ser ainda mais forte que os diversos holofotes dentro do corredor, o que causava um certo desconforto aos olhos. Ouvia o típico som de gritos e aplausos das multidões.

Tudo acontecera tão rápido para ele. A dezoito meses atrás ele era um pedreiro no interior do estado que gostava de correr nas estradas vicinais aos finais de semana. Agora estava lá, na competição mundial de atletismo. Sediada justamente em seu país.
Quando o Marcão o viu correndo num sábado de manhã e o chamou para treinar, convite que Alex negou prontamente. O técnico precisou de 3 semanas e uma promessa em dinheiro para convencer o rapaz a aceitar a proposta. Nos meses seguintes treinou de quatro a seis vezes por semana. Achava engraçado que o técnico o forçasse a ficar na academia fazendo exercícios de peito e braços. Oras, ele precisava correr, e não levantar pesos.

Depois de cinco meses treinando foi convidado a participar do campeonato sulamericano. Ficou bem classificado, mas seu tempo não foi o suficiente para o mundial. Quatro segundos tinham tirado sua vaga. Mas era justo, o outro corredor era muito mais experiente que ele. Qual foi sua surpresa, então, quando Marcão telefonou, três semanas antes do mundial:

- Alex, tudo bem, é o Marco.
- Fala Marcão, tudo certo! Aconteceu alguma coisa? Cancelou o treino de amanhã?
- Não, na verdade aconteceu uma coisa sim. O Luis foi pego no dopping e não vai pro mundial. A vaga é sua.

Alex se deixou cair na cadeira próxima ao telefone. Mesmo com todo seu treino, as pernas falharam naquele momento. Tremia incontrolavelmente, como se seu corpo fosse sustentado por duas varas de bambu.

- É sério isso Marco?
- É sim Alex, vem pra cá agora, vamos acertar a documentação necessária e hoje a tarde a gente começa um treino mais intenso.


Finalmente alcançaram a saída dos vestiários para o estádio. Alex sentiu, por um momento, que suas pernas o deixariam sozinho novamente, tal qual no dia em que ficou sabendo que competiria no mundial. Precisou parar por poucos segundos, olhando em volta. Dalí não era possível ver um único espaço vazio na arquibancada. Ele e Marco seguiram para a área de aquecimento, onde fizeram exercícios por mais de meia hora.
Uma coisa o acalmava: a imprensa - que já fizera uma reportagem especial sobre sua história - estava bem mais preocupada em fotografar cada passo do favorito da prova, um nigeriano que Alex ainda não tinha conseguido decorar o nome.
Graças a isso, tinha um pouco mais de tranquilidade. Além do que, todos os analistas esportivos já haviam dito que a presença de Alex na prova era a maior conquista a se esperar do rapaz naquele momento, e que certamente ele seria um dos grandes nomes do atletismo nacional para o próximo mundial.

Quando representantes do comitê organizador anunciaram o início dos preparativos da prova ele despediu-se do técnico com um abraço carinhoso:

- Alex, você sabe que tudo isso é mérito seu. Confie em você mesmo, por que eu confio.
- Valeu Marcão. O mérito pode até ser meu, mas a culpa a toda sua. - disse rindo.

Deixou o casaco do moleton com um dos voluntários do mundial e dirigiu-se a sua raia. Era o único brasileiro naquela classificatória. Ao som do tiro, correu tecnicamente. Utilizava o peso de seu próprio corpo para impulsionar-se para frente. A prova era rápida o suficiente para não sobrar tempo para pensar em nada antes de cruzar a linha de chegada. Olhou ansioso para o cronômetro digital, ao lado da pista. Tinha ficado em terceiro mas somente os dois primeiros de cada bateria estavam automaticamente na final.

- Desculpa Marcão, eu sei que você esperava pelo menos a classificação. - disse Alex um pouco cabisbaixo, voltando para a área de aquecimento.
- Porra Alê, do que você tá falando. Foi seu melhor tempo! Você ainda pode pegar uma vaga na final, por tempo. - respondeu o técnico, tentanto animar seu pupilo.

Quase uma hora depois realizava o mesmo ritual feito na classificatória. O tempo tinha lhe garantido a sétima raia na final. O nigeriano corria na quarta raia. Acenou tímido para a câmera quando anunciaram seu nome. Como o estádio já gritava, Alex não percebeu uma grande alteração de ânimos do público ao ouvir seu nome.

Preparou-se na raia. Pensou na imagem da padroeira guardada na mochila. Com o tiro, disparou pela pista. Olhava fixamente para a frente, sua mente estava completamente vazia. Segundos depois percebeu os flashes dos jornalistas, que normalmente confirmavam o final da prova. Caiu de joelhos no chão, estafado. Somente então olhou para o placar digital ao lado da pista. Não conseguiu achar seu nome onde ele deveria estar, quinto, quarto, terceiro, o nigeriano em segundo...
Sentiu seu corpo ser jogado contra o chão, quando o técnico pulou sobre ele, gritando e chorando. Somente então percebeu que as milhares de pessoas no estádio gritavam seu nome. No dia seguinte, todos os jornais estavam estampados com a foto de um herói ajoelhado no centro da sétima raia.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Os Fones Brancos

Saltou mais cedo do que o habitual da cama naquela terça-feira. Procurou sair do pequeno quarto sem fazer qualquer barulho, mas esbarrou numa cadeira cheia de roupas passadas na noite anterior. Assustado, olhou para trás. Os dois irmãos continuavam dormindo na outra cama de solteiro do quarto.
A roupa estava separada sobre o sofá da sala. No começo tinha sido terrível habituar-se a tirar a roupa do quarto para não acordar as crianças, mas depois de um mês isso já havia se tornado uma rotina que não o incomodava mais.

- Bom dia, mãe. - disse em um tom de voz ainda baixo.
- Bom dia, meu filho. - respondeu a mulher à beira do fogão. Ela esquentava água numa leiteira já meio enegrecida pelo fogo e pelo tempo. Usava uma saia verde já bastante gasta e uma camiseta com propaganda de um candidato nas eleições de seis anos atrás.

Simultaneamente, mãe e filho fizeram o mesmo movimento com a mão. Ela, ao desligar o fogo; ele, ao girar a maçaneta da porta:

- Não vai tomar o café hoje, Gilmar? - perguntou a mulher, segurando a leiteira com um pano de prato e virando-a sobre o coador preparado com o pó de café.
- Hoje não, Dona Zuleica. Quero chegar logo lá na empresa. - respondeu o rapaz, já com a mochila nas costas e metade do corpo do lado de fora da pequena casa.
- E porque essa pressa toda?
- É que hoje é dia de pagamento, mãe. Meu primeiro pagamento.
- Bom trabalho então. Tenha um bom dia! - respondeu ela, ouvindo a porta fechar às suas costas.

Enquanto observava o pó de café ceder ao calor da água fervente não pode deixar de pensar no quanto estava feliz. O menino era muito novo ainda. Só dezesseis anos. E tinha optado trabalhar por conta própria para ajudá-la. Depois de tudo que ele passara com o pai, antes da cirrose, e depois com o irmão mais velho, antes da cadeia.

Na rua, Gilmar esfregava os braços contra o corpo. A camisa de algodão azul clara não era exatamente quente, e a malha que a cobria também não segurava o forte vento que cortava o ponto de ônibus. Tinha ouvido numa televisão, ao passar em frente a padaria, que era uma das manhãs mais frias do ano. E ali, naquele ponto, graças a arquitetura dos barracos se lançando uns contras os outros, e todos contra a rua estreita, o vento corria canalizado, diminuindo ainda mais a sensação térmica.

Entrou no ônibus cumprimentando motorista e cobrador. Conhecia ambos, já que pegava a mesma linha, no mesmo horário há um mês, exatamente. Sentou-se num dos bancos da parte traseira, de onde podia observar cada um dos passageiros que entravam até que o ônibus ficasse lotado. Uma coisa comum a quase todos passageiros chamava sua atenção: os fones de ouvido. Quando o pai quebrou o rádio de pilha que tinham em casa, cinco anos atrás, ele prometeu que daria um desses "trecos de enfiar na orelha" pro filho, mas veio a doença. Desde então ficava observando os modelos que as pessoas usavam. Fios longos, curtos, brancos, pretos. Esses dias tinha visto, inclusive, um sem fio!

Desceu com alguma dificuldade do ônibus, espremendo-se entre as pessoas. Olhou no relógio de pulso, comprado em um camelô. Cumprira sua meta, chegar meia hora antes no trabalho. Olhou parao grande prédio, com seus vidros negros, e entrou. Tirou do bolso o crachá novo - tinha trocado o provisório por este há apenas 4 dias. Desceu as escadas e foi direto para a sala do cordenador do programa dos aprendizes.

- Bom dia, Seu Carlos. - cumprimentou, efuzivo.
- Bom dia, Gil. Chegou mais cedo hoje né? - respondeu o homem, ocupando quase toda a sala.
- Só um pouco. Pequei pouco trânsito, Seu Carlos.
- Que bom, Gil. Melhor mesmo, assim eu já te entrego o seu cheque e você se livra da fila que me atrapalha a vida todo dia dez. - disse o homem abrindo a gaveta da mesa a sua frente. - Um mês já! Tá gostando do trabalho?
- Tô sim, Seu Carlos. O pessoal aqui da empresa tá me ensinando um monte de coisas. - respondeu o garoto.

Carlos percebeu que ele queria dizer alguma coisa mais, mas parecia escolher as palavras certas.

- Desembucha logo, filho. O que você quer?
- Têm como o senhor me dar uma carta, alguma coisa com o quanto eu recebo seu Carlos? É que hoje eu vou passar numa loja lá perto de casa, pra comprar um MP3, e eles falaram que querem uma carta daqui pra poderem parcelar pra mim. - disse o rapaz, acanhado.
- Mas é lógico, Gil. Peço pra Renata fazer um holleritizinho pra você hoje mesmo. Passa aqui na hora do almoço.
- Obrigado, viu Seu Carlos.

Por volta das quatro horas, quando ia embora todos os dias, passou novamente na sala do Senhor Carlos, pegou o hollerith prometido e saiu do prédio. No ônibus, muito mais vazio devido ao horário, leu e releu o papel impresso com seu salário. Sorriu. Deu sinal para o motorista parar o ônibus, cerca de seis pontos antes daquele próximo a sua casa.

Entrou na loja, que ocupava quase toda a esquina. O atendente, um homem magro e já meio calvo, o abordou logo na entrada. Aquilo parecia o paraíso para Gilmar. Eram tantos modelos e cores. No fim, escolheu um dos que tinha o fio branco. Sempre tinha achado os de fio branco mais bonitos. Não sabia muito bem o porque, mas o vendedor ainda conseguiu fazer um preço especial para o modelo que já vinha com rádio embutido, ia pagar só quinze reais a mais, por ele. Ainda na porta da loja tirou o aparelho da caixa. Com as mão tremendo de alegria encaixou o fone no aparelho e ligou-o. Sintonizou numa das estações que se lembrava do número e sorriu. O som era claro e tocava uma das músicas que ele mais gostava. Aumentou o volume no máximo, para ver até onde o aparelhinho alcançava. Enfiou a caixa e outros pequenos plásticos na sacola e pisou na rua para atravessá-la, de volta ao ponto.


Com o telefone na mão, Dona Zuleica soltou o copo de suco de goiaba que segurava. Ao se espatifar no chão, o líquido escorreu vagarosamente pelo chão torto e empoçou-se num canto da sala. Também vagarosamente escorria o líquido vermelho contra o asfalto. O ônibus estava parado poucos metros a frente, e a multidão aglomerava-se.

- Acho que ele não ouviu a buzina. - disse o motorista, olhando para o corpo estendido próximo a sarjeta. Podia-se escutar o som alto que vinha dos fones de ouvido brancos largados sobre a poça vermelha.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Jabá!

O intuito desse blog nunca foi fazer propaganda de nada (além dos contos deste que vos escreve). Dito isso, fo**-se o intuito do blog, ele é meu e eu faço propaganda do que eu quiser...

Indico a leitura do livro "Dias Contados - Contos sobre o Fim do Mundo", Editora Andross.
Os motivos pra lê-lo? Bom, primeiro porque o tema "fim do mundo" é sempre interessante. Segundo, porque é uma antologia de contos de novos autores, e é sempre legal dar um apoio pra todos nós que estamos começando a escrever. E terceiro, porque um GRANDE amigo meu tem um conto publicado lá, e é MTO BOM!


Para mais informações, é só clicar neste link da Livraria Cultura.

E só pra terminar o assunto, segue o trailer de 2012 - novo filme de Roland Emmerich (Independence Day, O Dia Depois de Amanhã). O que que o filme tem a ver com o livro? Nada diretamente, mas é mais um filme catástrofe, as imagens são mto boas e dá uma vontade a mais de comprar e ler o livro.