segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Sinal dos tempos

'1980'

- Dona Eugênia, por favor. - disse o chefe em tom alto, sentado a mesa.

A senhora entrou na sala e ajeitou o paletó do terno marrom, pendurado no cabideiro ao lado da escrivaninha de mogno vermelho. Tinha cerca de 60 anos, cabelos grisalhos presos em coque.

- Pois não, sr. Edgard? - respondeu a mulher. Sua voz tinha uma linha de rouquidão trazida pela idade.

- A senhora já pôde verificar a correspondência do escritório? - continuou o homem, tomando o cuidado de olhar a senhora nos olhos enquanto falava, para auxiliá-la com o pequeno problema de audição que se manifestara há alguns meses.

- Sim, Sr. Edgard. Cá estão! - disse Eugênia, estendendo dois pacotes de envolopes sobre a mesa do patrão. A pilha de cartas da esquerda tinha os envelopes abertos e as correspondências presas por clipes em seus respectivos envelopes; o pequeno monte da esquerda tinha as cartas completamente seladas. - Como o senhor já está acostumado, as cartas endereçadas ao ofício estão organizadas por ordem de relevância do assunto, as enderaçadas ao senhor, especificamente, estão separadas neste outro monte.

- Muitíssimo obrigado, Eugênia! Não sei como eu poderia me organizar sem esse cuidado todo da senhora. Aliás, pode-me auxiliar em uma outra tarefa?

- Com certeza, diga-me o que precisa.

- Vou ditar uma carta, gostaria que a senhora a datilografasse.

- Um minuto, vou buscar a máquina. - disse já caminhando em direção a sua mesa, na ante-sala. Apesar da idade, caminhava rapidamente, e o peso da máquina de escrever parecia bem menor do que realmente o era em sua mão. Já sentada na pequena bancada ao lado da mesa do chefe, esperou que ele pigarreasse antes de começar:

- Caro José. O relatório que me enviou esta semana estava bastante completo e facilitou-me sobremaneira na composição da apresentação que usarei na próxima reunião do Comitê, segunda-feira vindoura. Gostaria de convidar você, sua mulher e suas crianças para um jantar em minha casa no segundo dia do próximo mês, por volta das 18h. Será uma honra recebê-lo, especialmente porque estou certo de que esta licitação será nossa graças ao seu trabalho. Peço apenas que confirme sua presença com minha secretária, Dona Eugênia, até o próximo sábado. Atenciosamente, Edgard Carvalho."

- Com a licença que me é devida, Sr. Edgard, mas o senhor está mesmo tão confiante de que venceremos esta licitação? - perguntou Eugênia, enquanto retirava a folha recém-escrita da máquina e anexava-a a um envelope em branco que repousava ao lado.

- Muito confiante! O trabalho deste jovem foi impecável! Ah, antes que me esqueça. Na lista de lembranças de final de ano que pretendemos enviar aos fornecedores, favor retirar o nome da W.M.Y., infelizmente vou rescindir o contrato com eles daqui algumas semanas e acho que não seria de bom tom enviarmos mimos de Natal.

- Com certeza, Sr. Edgard. - respondeu rapidamente a senhora, andando a pequenos passos rápidos de volta a sua mesa. Antes de sair, fechou a porta do chefe cuidando para não batê-la.

Edgard ficou algum tempo mirando a janela ao longe, depois voltou a cabeça para o jornal que ainda não terminara de ler sobre sua mesa.

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'2010'

- Sheyliane! - gritou uma voz masculina - Sheyliane, porra, porque você nunca tá na sua mesa?

Uma jovem loira entrou na sala esbaforida. Batia a mão sobre a blusa, deixando algumas migalhas de pão cairem no interior da sala. Tinha no máximo 21 anos, unhas pintadas de vermelho intenso.

- Desculpa chefe, tava comendo um lanchinho e não ouvi você berrando. Pode mandar que eu já cheguei!

- Você já abriu meus e-mails hoje? Tô com um problema de acesso aqui nessa merda de computador. - respondeu o homem, olhando para a tela azul com letrinhas cinzas.

- Vixe Jesuis! Esqueci de tudo. Dá cinco minutinhos que eu já faço isso, Mau.

- Vai logo!! E para de me chamar de Mau. Uma hora você esquece e me chama assim na frente da minha mulher! É Maurício, Sheyliane, Maurício!

- Ai, desculpa!

- Anda, vai, vai!

Quase quinze minutos depois Maurício ouviu o som inconfundível do salto da jovem aproximando-se da porta de sua sala.

- Pronto chefe! Tudo lidinho. - a loira olhou para a tela do computador, que agora funcionava - Ah! Voltou né? Então, eu marquei com aquela bandeirinha vermelha os assuntos importantes, o que eu achava que não prestava eu joguei pra lixeira. Ah! Tem também um e-mail da sua mulher. Ele tá marcado como lido aí porque eu cliquei errado, mas o senhor não leu não.

Maurício olhou feio para a secretária, que voltou a falar antes que ele pudesse recriminá-la.

- E olha, é bom o senhor ligar logo pra bruaca, que pelo jeito o bicho tá pegando pro lado do senhor viu!

- Ai Sheyliane, eu só não te demiti ainda porque tenho preguiça de entrevistar outra viu! Vai, vai, sai da minha sala! Vou terminar um e-mail aqui e vou te enviar. Quero que você revise o texto com o corretor do Word e envie pro Zézão da Contabilidade.

- Sim senhor, chefinho! - respondeu, rodando os pés sobre os saltos e saindo rebolando em direção ao corredor.

Enquanto a porta batia estrondosamente, Maurício digitava displicente em seu teclado: "Zé! O seu pdf foi foda! Me salvou! O ppt que eu fiz de madrugada pra reunião de hoje a tarde ficou bem bom! Passa lá em casa sabadão pra tomar umas. Certeza que os gringos vão escolher a gente agora!". Nem leu o que havia escrito e enviou para a secretária. Esta, por sua vez, apertou a tecla de "Forward" digitando o endereço do tal Zé da Contabilidade, sem ao menos se dar ao trabalho de bater os olhos sobre o texto do patrão.

Alguns minutos depois a porta do corredor se abriu, deixando ver a cabeça de Maurício por entre a fresta.

- Sheyli!!! Lembra de depois deletar o dono daquela merda de W.M.qualquer-coisa do meu Facebook. Ah, e bloqueia ele no meu msn também! O cara é um porre!

Bateu a porta e voltou a sua mesa:

- Porra! Travou de novo!

Voltamos com nossa programação normal



Senhores telespectadores, gostariamos de informar que tivemos um pequeno problema técnico que já foi solucionado.
Voltamos agora com a nossa programação normal!

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Ligações Futuras

A estrutura de ferro pintado de branco das mesas parecia leve, e ornava perfeitamente com os guarda-sóis rosa e laranja que se colocavam aqui e alí entre as mesas. O café não estava completamente cheio e os garçons andavam sem muita pressa por entre os clientes sentados. O olhar de Marina parecia vago quando percebeu uma mão acenar a centímetros de seu nariz:

- Ei, Má! Acorda!

- Que foi, tô aqui Jú.

- Não tá não, você estava muito, muito longe.

- Ai Jú, você sabe que eu não tô bem. Ainda to sentindo muita falta do Pedro.

- Pelo amor de Deus, mulher! Faz três meses já, desencana disso.

- Primeiro, você sabe que eu não acredito em Deus. E segundo, eu tento Jú, eu juro que eu tento. Mas até esse café me lembra ele.

- Também pudera, monga, vocês dois vinham aqui dia sim, dia não.

- Monga é a sua... - Marina parou a frase no meio e enfiou a mão na bolsa - Espera um pouco, acho que meu celular está tocando.

Depois de tirar um kit de maquiagem, quatro cores diferentes de gloss, uma agenda e uma carteira rosa, a jovem achou o celular, que agora vibrava em sua mão. Antes de atender, olhou para o visor externo:

- Ai pode ser o Pedro! - disse Marina, soando como uma criança vendo um pacote fechado de presente.

- Como assim "pode ser", o nome dele não aparece aí no visor? - respondeu a outra, sem se mexer da cadeira.

- Não, eu apaguei o telefone dele. - replicou novamente Marina, rindo, enquanto lia em voz alta o número para ver se a amiga reconhecia.

- O sua lesada! Esse número que você falou é do seu celular!

Marina não respondeu, já havia aberto o celular e acabara de encostá-lo na orelha.

- Alôu! Isso, é Marina. Quem fala? QUÊ? - de repente, ficou pálida.

Afastou o celular da orelha e leu novamente o número para si mesma. Apertou o botão de viva-voz, para que a amiga pudesse ouvir.

-Alô, Marina.

- Estou... estou aqui. Você pode me repetir quem você é por favor? - disse, olhando para Juliana e apontando para o celular como se um inseto fosse voar de dentro dele ao invés da resposta.

- Já te falei Marina. Isso pode parecer meio estranho, mas eu sou você! Na verdade eu sou você daqui vinte e três anos.

- Isso não é possivel! - disse Juliana em voz alta, soltando-se contra o encosto de costas da cadeira.

- Olha, a Jú tá aí comigo? Nossa, já sei, vocês estão no Café? Aquele das mesinhas brancas? Eu lembro desse dia... Aii, como chamava, saco. Aproveitem esse lugar, ele fecha em menos de um ano.

- Ai Má, é sua voz mesmo. E o seu jeitinho de falar no celular.

- É... mas... o que você quer comigo, digo, com você. COM NóS, sei lá! - interrompeu Marina, fazendo sinal de silência para Juliana.

- Bom, tô te ligando porque minha terapeuta disse que seria o melhor a fazer. Depois de algumas sessões ela conseguiu achar esse aninho de sofrimento no meu passado e achou melhor dar uma ajudinha nele. Então resolvi te contar que terminar com o Pedro foi a melhor coisa que você fez, mas nós - digo, eu e você, ou só eu - sofri demais porque não sabia que tudo daria tão certo um tempinho depois.

- Você quer dizer que...

- Quero dizer que você não precisa ficar sofrendo mais. Todas as decisões que você tomou foram ótimas. Nossa vida não podia estar mais perfeita. O recado é esse: não mude nenhuma das decisões que você vai tomar, você acertou toooooddas! Lindona, preciso desligar porque você não imagina como fica caro ligar pro passado.

- Não, espera. Isso só pode ser uma brincadeira de mal gosto, você não disse se. - o telefone ficou mudo e a ligação caiu.

- Meu Deus Má, você é uma mão-de-vaca até no futuro. Desligou assim, na nossa cara, só pra não pagar caro!

- Meu, não sei o que fazer!

- Como assim, não sabe?

- É, tava pensando em voltar com o Pedro. Mas to com uma tremenda dúvida. E eu no futuro disse que terminar com o Pedro foi a melhor coisa que eu fiz, e que tudo que eu decidi foi perfeitinho. Agora... o que que eu decidi? Voltar ou não com ele?

- Ai, que papo de louco. Meu, você não acreditou nessa história de ser você no telefone?

- Ahhhh, e você não acreditou?

- Claro que não, monga!

- Aham, sei. Então porque você falou que era meu jeito de falar?

- Porque sim, Má. Sei lá, pode ser o Pedro te zoando com um programa de computador.

- Ai Jú, não tá me ajudando nada assim. Vai, finge que você acreditou. O que você faria?

- Bom, vamos lá. Se ela falou que você acertou em tudo que você decidiu, e você, antes da ligação, tava querendo voltar com o Pedro, volta logo!

- Mas porque ela falou que eu sofri um ano. Faz só três meses que nós terminamos.

- Ai Má... ela falou um ano porque você é exagerada mesmo! Sempre foi! Volta logo com o Pedro.

Alguns minutos de conversa depois Marina já tinha ligado para o ex-namorado e pedido para ele encontrá-la no café em que estavam.
Quando ele chegou Juliana já tinha ido embora, como havia combinado com a amiga. Os dois conversaram quase uma hora, e quando levantaram da mesa já estavam de mãos dadas. O sorriso de Marina cobria-lhe o rosto todo. Seu eu futuro estava certa, pensou, não podia estar mais feliz.
Pagaram a conta e saíram do café. Antes de atravessarem a rua Marina virou-se para Pedro. Beijou rapidamente, com risinhos, e tornou a virar o corpo e marchar em direção à rua. Um carro em alta velocidade cruzou a rua no mesmo momento.

- Saco! Ela entendeu tudo errado! - disse a Marina do futuro e deixou de existir.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Síndrome

Nos mudamos para Cap. Grass há mais ou menos três semanas. A cidade é bem pequena, acho que no máximo uns 150 mil habitantes, mas bastante agradável. Fica acho que uns setenta quilômetros de Gainesville, na direção da costa oeste. Acho que a mudança fez muito bem para a Alice, desde que nos mudamos ela parou com o comportamento estranho.
Na verdade, foi o psiquiatra dela que me disse para escrever esse diário . Segundo ele, era importante eu amarrar uma ponta da minha sanidade em algo que eu pudesse consultar sempre, para não me perder junto com ela. Na verdade eu achei essa conversa uma tremenda besteira, mas como a mudança foi idéia dele e parece ter funcionado não vi problema nenhum em fazer o que ele disse.
Os Wilson, nossos vizinhos nos chamaram para um churrasco na piscina deles no próximo sábado. A Alice ficou empolgada para ir mas eu não tenho certeza se é uma boa idéia. Vai que eles convidam muitas pessoas. O problema da Alice começou justamente numa festa lotada de gente desconhecida.

**

Dezenove dias. Somente dezenove dias de tranquilidade. Sabia que não deviamos ter ido na festa. A comida estava ótima, os hamburgueres que o John serviu estavam no ponto mas, de fato, eles chamaram mais gente. Acho que eram dez ou quinze pessoas no máximo. A Alice não disse nada na hora, mas quando chegou em casa... Vou tentar reescrever o diálogo, assim eu posso mostrar para o dr. Bleuler:

- Você tinha ido embora. Tinha ficado em New York.
- Como assim, babe? Do que você tá falando.
- Já te falei para não me chamar de "babe". Só o Bob pode me chamar assim.
- Mas... eu sou... eu sou o Bob querida. Seu marido!
- Não é! Eu sei que não é! Você é igual a ele. Muito igual. Mas eu sinto, eu posso sentir que você não é ele. SAÍA DAQUI!! SAÍA DA MINHA CASA AGORA!!

Foi mais ou menos nessa hora que ela arremessou o vaso que havíamos ganhado dos Wilson contra da parede atrás de mim. Precisei sair de casa, como vinha acontecendo nos últimos meses. Quando ela dormiu eu dei o remédio.
Meu Deus! Eu achei que esse pesadelo tivesse parado.

**

As coisas pioraram na última semana. Não fiz as contas direito mas me parece que ela passou mais tempo confusa do que sã dessa vez. Não aguentei, liguei para o Centro Neurológico em NY de novo. A idiota da recepcionista disse que nenhum dos médicos responsáveis poderia me atender pelo telefone... de novo. Acabei ligando para o Bleuler e ele insistiu que eu ignorasse os surtos e tentasse manter a vida nos trilhos, para que ela se acostumasse novamente com a minha face. Como assim, se acostumar com a minha face?
Mesmo assim comecei a ler o livro que ele me indicou. Só consegui começar porque os remédios que ele passou para acalmá-la basicamente a fazem dormir o dia todo. Assim até eu me acalmaria. O livro é bastante didático, e isso é bom. Ele consegue me explicar alguns detalhes que o Bleuler sempre considerou ponto comum de entendimento. O conceito da tal propagnosia espelhada que ele sempre falou é bem simples: o cérebro mantém a capacidade de reconhecer formas e rostos, mas perde a capacidade de associar sentimentos pregressos a ele. Grande merda acadêmica; é muito fácil escrever teoria quando nunca se passou por isso.
Esse é o problema dos médicos. Eles não se envolvem, eles não sabem realmente o que é sentir. Minha mãe foi enfermeira em um hospital público em Vermont. Lembro até hoje dela chegar em casa chorando. Eu devia ter uns nove ou dez anos na época, e perguntava se alguém tinha morrido naquele dia. A resposta era quase sempre a mesma: "Não é preciso que alguém morra para que eu sinta a dor". Os médicos não sentem a dor, a própria Alice não sente a dor. Eu sinto! Eu sinto a dor por nós todos.

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Parece que os remédios começaram a fazer efeito. Ela quase não se confundiu essa semana. Só tem um problema, ela passa metade do tempo dopada. Mal consegue falar qualquer coisa. Não quero isso para ela. Estou pensando em diminuir a dose do medicamento, sem falar com o Bleuler mesmo.

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Não, não, NÃO! Durou menos tempo do que quando nos mudamos para cá. Hoje a tarde eu estava sentado na sala quando senti a faca da cozinha entrando no meu ombro. Ela gritou que eu era um estranho tentando me passar pelo marido dela, mas que quando ele chegasse eu ia aprender uma lição. Os médicos do hospital que fizeram a sutura tentaram me forçar a registrar uma queixa contra ela na Polícia. Foi preciso o Bleuler ligar lá e explicar para eles a condição completa da Alice para que eu pudesse voltar para casa em paz. Ela já estava dormindo, mas achei melhor dormir na sala.

**

Acho que a crise do último mês passou, finalmente. A Alice tem me reconhecido todas as manhãs. Ela até me levou café na cama domingo passado. Vamos ver um jogo dos Marlins semana que vem. O pai dela sempre foi fanático por baseball e ela sempre gostou de ir ao estádio lembrar dele, mesmo que não entendesse uma única regra sequer de baseball.
O problema é que eu continuo com medo. Cada vez que a Alice me olha por algum motivo eu tenho a impressão de que ela vai começar a gritar de novo. Marquei uma consulta com um outro psquiatra, para mim. Quero algum remédio para me acalmar. Tentei comprar algum tarja preta, mas os farmaceuticos certinhos desse inferno de cidade não quiseram me vender sem receita.

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Quase não consigo explicar minha alegria. Ela conseguiu passar um mês sem ter uma crise sequer. Quero dizer, alguns dias ela demorou muito mais do que uma pessoa normal demoraria para me reconhecer, mas pelo menos não tentou me matar de novo. O organismo dela começou a se acostumar com a medicação porque ela não fica mais tão dopada. Os calmantes tem me feito bem, também. Agora estou conseguindo dormir quase todas as noites.

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Agora a pouco fui escovar meus dentes e tomei um susto. Um outro homem estava olhando para mim de dentro do espelho. Parecia tanto comigo, TANTO! Mas não era eu, tenho certeza que não era eu. Acertei um soco em cheio no espelho. Eu gostava daquele espelho, mas pelo menos mandei o impostor embora, tenho certeza que mandei.


quarta-feira, 19 de agosto de 2009

The best is yet to come

** 28 de Outubro de 1964 **

"In other words, hold my hand
in other words, baby, kiss me..."


Eloise, apoiada no piano de calda de madeira escura, terminou a música debruçada sobre o rapaz que tocava o piano. Estava usando um vestido preto, que contrastava com sua pele alva e seus cabelos completamente loiros. Contudo, o jovem - de terno e gravata pretos com camisa branca - olhava mesmo era para sua boca; os lábios carnudos eram realçados por um vivo batom vermelho.

A platéia aplaudiu enquanto um ou outro homem jogava rosas brancas no palco, as quais Eloise recolheu gentilmente e as beijou. Caminhou suavemente até o jovem que havia voltado a tocar no piano e disse em seu ouvido:

- Estarei no meu camarim, passe por lá Mickey. - terminando com um leve beijo em sua bochecha.

O rapaz tocou mais três músicas até que um homem cerca de dez anos mais velho subisse ao palco carregando um saxofone. Ele usava um fraque que havia sido nitidamente cortado anos atrás, quando seu peso provavelmente era alguns quilos menor. Mike levantou-se e andou até o amigo:

- Eric, eu sei que nos tocariamos juntos as primeiras músicas mas, tem como você fazer isso sozinho essa noite? É que...
- Eloise, acertei? - perguntou o homem, já com um sorriso malicioso no rosto.
- Sim.
- Vá lá moleque, eu me viro por aqui. Mas Mike, já te falei para tomar cuidado com isso tudo. Você é novo, chegou em New York há apenas 3 meses. Não se envolva desse jeito com uma mulher quase vinte anos mais velha que você.
- Pode deixar Eric, eu sei me cuidar.
- Só não sei se você sabe cuidar de você estando com ela. - mas Mike já tinha dado as costas. Eric preparou o instrumento e soprou algumas notas como se o esquentasse para o show.

Ao descer do palco Mike recebeu cumprimentos dos homens sentados nas primeiras mesas. O salão era pequeno e forrado em madeira escura. A luz amarela pendia do teto sobre as mesas e dava um ar aconchegante ao ambiente. Especialmente em dias como aquele, em que uma fina camada de fumaça tomava todo o espaço do bar.

-- * --

- Aquela última música foi para mim? - perguntou o rapaz, entrando no pequeno cômodo que servia de camarim para a estrela do show.
- E para quem mais seria? - respondeu Eloise, com a voz docemente grave que lhe era comum.
- Não sei, você sempre anda entre as mesas flertando com os homens.
- Faz tudo parte do show, meu bobo preferido. Porque você acha que aqueles senhores trazem suas esposas a um bar pequeno e cheio de fumaça no meio de Manhattan? Para assistir ouvir algumas músicas e ir embora pensando que estão acompanhados por outra pessoa.
- Mas...
- Sem mais - retrucou, segurando o rosto do jovem entre suas mãos. Aproximando-se lentamente de Mike, beijou-lhe suavemente a boca - você sabe que não tem motivos para ter esse tipo de medo. Já te disse que estou completamente apaixonada por você, Mickey.
- Eu também, mas por favor, pare com essa história de Mickey. É Mike, e você sabe que eu não gosto disso.
- Mas eu gosto de te chamar de Mickey - respondeu movendo a cabeça ritimadamente até tocar novamente os lábios do rapaz.

Se beijaram algum tempo até que duas batidas na porta os interromperam. Eloise empurrou Mike para atrás do vão entre um mancebo com roupas e sua penteadeira. Abriu apenas uma pequena fresta. Mike reconheceu a voz de Luke, o negro que trabalhava como barmen na casa:

- Srta. Eloise, desculpe-me incomodá-la.
- Por favor Luke, não é problema algum. Diga-me, aconteceu alguma coisa?
- Não, apenas vim ver se a senhora já quer que eu a leve ao hotel.
- Sim, quero sim. Dê-me mais uns cinco minutos. Te encontro na saída dos fundos.
- Com certeza senhora, estarei te esperando.
- Obrigada Luke. Mas não se esqueça que é senhorita.
- Desculpe-me. - disse o negro, fechando a porta atrás de si, com cuidado para que não batesse.

Eloise tirou o colar de pérolas do pescoço e o colocou dentro de uma caixa preta sobre o móvel. Fez sinal para que Mike a ajudasse com o zíper nas costas da roupa.

- Obrigada. Agora vire-se, vou tirar o vestido.
- Mas nós já...
- Oras menino, deixe de ser atrevido. Se eu disse para se virar, vire-se! - respondeu rindo. Mike, contudo, obedeceu-a.
- Pronto, passe-me a minha piteira, por favor. Acho que está na minha bolsa aí nesta cadeira.

Somente depois de pegar a piteira de prata dentro da bolsa Mike virou-se para vê-la. Ela agora vestia um outro vestido, também preto com pequenas listras brancas, mas bastante mais folgado do que o do show.

- Você precisa mesmo fumar isso?
- Lógico! Não é pelo sabor, é pelo status.
- Mas ninguém está te vendo aqui.
- Você é novo por aqui. Mas eu vou te ensinar mais uma coisa sobre New York. Se você quer ser famoso nessa cidade, se quer que as pessoas te levem a sério, fume. Fume e beba whisky sempre que tiver qualquer oportunidade. Com licença, meu querido, mas tenho que ir. Luke está me esperando lá fora.

-- * --

** 08 de Novembro de 1964 **

- Não seja tolo, Brian. Eu não pediria para você me trazer a um almoço no restaurante do Ritz se eu não quisesse que as pessoas me vissem com você. - disse Eloise, segurando na mão do homem sobre a mesa.
- Então porque você esperou aquele fedelho entrar no prédio antes de descer do carro. - retrucou o homem. Tinha uma grande cara redonda, e um corpo tão grande e redondo quanto. O bigode fino que usava parecia não encaixar nos traços fortes de seu rosto.
- Porque aquele menino é meu pianista no show que faço todas as noites, e ele é apaixonado por mim. E eu nunca teria nada com um menino daquela idade. Então eu evito encontrá-lo fora do palco.

Antes que Brian pudesse responder qualquer coisa o garçom chegou trazendo os pratos que haviam pedido. O homenzarrão pediu ainda que lhe trouxesse uma garrafa do melhor vinho do restaurante.

- Ontem vi um colar e brincos de diamantes naquela joalheria na 8th Street que eram simplesmente fantásticos. Achei que ficariam perfeitos com aquele vestido vermelho que você me deu semana passada.
- Você os quer?
- Não sei Brian. Você tem me dado tantas coisas nesses últimos meses Acho que não teria coragem de aceitar mas nada de você.
- Mas eu gosto de dar essas coisas. Afinal, eu tenho que ter o direito de dar o que eu quiser para minha futura esposa.
- Claro que sim, seu bobo. Mas... - disse Eloise, com um olhar perdido pelo amplo salão do restaurante.
- Mas o que, Ellie?
- Você sabe. Eu não gosto daqueles homens que andam com você. - disse, apontando discretamente para quatro homens vestidos exatamente iguais, espalhados pelo salão.
- Por favor Eloise. Não vamos discutir isso de novo. Você sabe que quando se atua no que eu atuo nessa cidade você tem que tomar seus cuidados.
- É exatamente esse o problema, Brian. Você já tem dinheiro mais do que suficiente pra gente viver bem. Você podia parar de conviver com essas pessoas da máfia. Não sei, a gente podia se mudar de New York.

Brian olhou para os lados e segurou o pulso de Eloise firmemente:

- Nunca mais fale a palavra máfia. Nunca.
- Desculpe-me - responde, baixando um pouco os olhos - mas é que eu tenho medo que algo te aconteça.
- É justamente para não me acontecer nada que eu tomo esses cuidados.
- Posso te pedir uma coisa, então?
- Claro que sim.
- Eu aceito me mudar para a sua casa, como você havia me pedido. Mas com uma condição: seus capangas não ficam mais lá enquanto eu estiver morando com você. Você pode andar com eles pra cima e pra baixo durante o dia, mas quero eles longe de nossa casa.
- Tudo bem Ellie, tudo bem. O que eu não faço por você?

-- * --

** 14 de Novembro de 1964 **

"Don't you know little fool, you never can win
Use your mentality, wake up to reality..."


Sentada sobre o piano Eloise cantava sem tirar os olhos dos olhos de Mike. O vestido vermelho e o conjunto de brincos e colar de diamantes deixavam-na ainda mais sedutora. Depois da última música, Eloise vez o mesmo ritual de todas as noites, passando pelo beijo na bochecha de Mike e indo para o seu camarim.

- Estou com medo, Mickey. - disparou assim que o jovem entrou em seu camarim.
- Porquê? - respondeu ainda a porta, assustado.
- Não sei se você percebeu um homem que estava na platéia. Sentado numa das mesas ao fundo.
- Acho que eu vi quem era. Mas, porque você está com medo dele?
- Ele é envolvido com a máfia de New York. O Luke me disse que ele não é dos peixes grandes, mas mesmo assim é muito perigoso. E há umas duas semanas ele tem me perseguido. Vem aqui quase todas as noites, me segue nas ruas as vezes.
- Meu Deus! Você quer que eu faça alguma coisa?
- Claro que não, Mickey! Ele é um homem perigoso.
- Grande merda. Não tenho medo de ninguém. Não se ele estiver te fazendo mal.
- Por favor, Mickey. Não sei nem porque eu te contei. Não quero que você faça nada. Você é tolo, um capira do interior. Você não sabe com o que estaria se metendo. - Eloise soltou-se sobre uma poltrona de couro escuro no canto do quarto, algumas lágrimas escorreram de seu rosto.

Mike aproximou da mulher e agachou-se, abraçando-a. Ficaram naquela posição por vários minutos antes de se beijarem.

- Pode ficar tranquila, Eloise. Não vou fazer nada que seja perigoso.

-- * --

** 15 de Novembro de 1964 **

Quando Eloise chegou ao bar Eric estava no palco com seu saxofone. A casa estava cheia e a fumaça que cobria o salão um pouco mais densa, o que dificultava discernir o rosto das pessoas sentadas nas mesas mais distantes. Como de costume, Eloise caminhou vagarosamente até o bar. Mesmo estando ainda sem o vestido que usaria no show aquela noite seu andar atraia a atenção dos homens.

- Uma dose de whisky, Luke, por favor. - disse, apoiando-se no balcão do bar, ainda olhando para as pessoas nas mesas como se procurasse alguém.
- Claro, srta. Eloise.
- Diga-me uma coisa, Luke. Onde está o Mike. Geralmente ele abre no piano, o Eric costuma entrar somente depois de mim.
- Então, o menino não apareceu por aqui hoje. Até estranhei e fui ao apartamento dele, que é aqui perto, mas ninguém respondeu. A vizinha disse que ele voltou tarde da noite ontem, provavelmente depois de sair daqui, e poucos minutos depois saiu de novo.

Eloise não respondeu, apenas pegou o copo e tomou um longo gole do líquido no copo. Depois, sentou-se numa cadeira alta e começou a rodar a pedra de gelo no copo. Seu olhar ainda era perdido entre as mesas.

- Luke, você viu se um homem que sempre senta-se naquela mesa apareceu por aqui hoje?
- Quem? O Brian?
- Esse mesmo, acho que era esse o nome.
- Com certeza o Brian não veio aqui hoje. Não veio, e não vem. - disse o barman calmamente, enxugando um copo com um guardanapo branco que a pouco estava em seu ombro.
- Como assim? - respondeu Eloise subitamente, virando-se para encarar o homem.
- Pois é. Estava no jornal de hoje cedo. A polícia invadiu a casa de uns três mafiosos hoje de manhã, mas parece que quando chegaram na do Brian ele estava morto. Encontraram mais um corpo na casa, mas não divulgaram o nome.
- Que pena. Não foi bem isso que eu tinha planejado.
- Desculpe srta?
- Nada Luke, nada. Estava pensando alto. Por favor Luke, você pode pedir para alguém te substituir no bar algum tempo?
- Sim, Eloise, porque?
- Gostaria que me levasse ao aeroporto.
- Mas... o show.
- Acho que não teremos mais show essa noite.

Dois homens de terno entraram escancarando a porta do bar. Ambos analisavam o local minuciosamente. Eloise percebeu quem eram:

- Mas vamos rápido, te encontro na porta dos fundos.

Saiu rapidamente do bar e entrou pela porta que dava acesso ao seu camarim. Abriu uma grande bolsa e jogou as quatro grande caixas de jóias, os vestidos que usava nos shows e saiu caminhando a passos largos.
Como sempre, Eloise sentou-se no banco de trás do carro e pediu que Luke ligasse o rádio do carro. Depois de alguma dificuldado, conseguiu sintonizar uma estação que tocava Sinatra.

They call you lady luck
But there is room for doubt
As times you have a very un-lady-like way
of running out


domingo, 16 de agosto de 2009

Metros Rasos

Amarrou o pé esquerdo do tênis e se levantou. Apesar de colada no corpo, já estava acostumado com a roupa. Soltou os braços e os balançou, num exercício de relaxamento dos músculos. O silêncio naquele vestiário o acalmava. Pegou uma pequena imagem de sua santa padroeira e encostou sobre a boca, de olhos fechados. Vagarosamente abriu o bolso externo da mochila e a guardou. Três batidas na porta quebraram o silêncio que já durava alguns minutos.

- Alex, tudo pronto aí? - perguntou um homem de cabelos brancos e moleton parado a porta semi-aberta.
- Tá sim. To saindo. - respondeu Alex, fechando a mochila e levantando-se do banco.
- O estádio está lotado hoje. Ouvi dois voluntários, que foram numa reunião da organização hoje de manhã, falarem que é record de público.

O atleta não respondeu. Apenas acompanhou seu treinador pelo longo túnel extremamente bem iluminado que dava para o campo de provas. Olhando para a frente, tinha a impressão de que o túnel era interminável. A luz que vinha da entrada conseguia ser ainda mais forte que os diversos holofotes dentro do corredor, o que causava um certo desconforto aos olhos. Ouvia o típico som de gritos e aplausos das multidões.

Tudo acontecera tão rápido para ele. A dezoito meses atrás ele era um pedreiro no interior do estado que gostava de correr nas estradas vicinais aos finais de semana. Agora estava lá, na competição mundial de atletismo. Sediada justamente em seu país.
Quando o Marcão o viu correndo num sábado de manhã e o chamou para treinar, convite que Alex negou prontamente. O técnico precisou de 3 semanas e uma promessa em dinheiro para convencer o rapaz a aceitar a proposta. Nos meses seguintes treinou de quatro a seis vezes por semana. Achava engraçado que o técnico o forçasse a ficar na academia fazendo exercícios de peito e braços. Oras, ele precisava correr, e não levantar pesos.

Depois de cinco meses treinando foi convidado a participar do campeonato sulamericano. Ficou bem classificado, mas seu tempo não foi o suficiente para o mundial. Quatro segundos tinham tirado sua vaga. Mas era justo, o outro corredor era muito mais experiente que ele. Qual foi sua surpresa, então, quando Marcão telefonou, três semanas antes do mundial:

- Alex, tudo bem, é o Marco.
- Fala Marcão, tudo certo! Aconteceu alguma coisa? Cancelou o treino de amanhã?
- Não, na verdade aconteceu uma coisa sim. O Luis foi pego no dopping e não vai pro mundial. A vaga é sua.

Alex se deixou cair na cadeira próxima ao telefone. Mesmo com todo seu treino, as pernas falharam naquele momento. Tremia incontrolavelmente, como se seu corpo fosse sustentado por duas varas de bambu.

- É sério isso Marco?
- É sim Alex, vem pra cá agora, vamos acertar a documentação necessária e hoje a tarde a gente começa um treino mais intenso.


Finalmente alcançaram a saída dos vestiários para o estádio. Alex sentiu, por um momento, que suas pernas o deixariam sozinho novamente, tal qual no dia em que ficou sabendo que competiria no mundial. Precisou parar por poucos segundos, olhando em volta. Dalí não era possível ver um único espaço vazio na arquibancada. Ele e Marco seguiram para a área de aquecimento, onde fizeram exercícios por mais de meia hora.
Uma coisa o acalmava: a imprensa - que já fizera uma reportagem especial sobre sua história - estava bem mais preocupada em fotografar cada passo do favorito da prova, um nigeriano que Alex ainda não tinha conseguido decorar o nome.
Graças a isso, tinha um pouco mais de tranquilidade. Além do que, todos os analistas esportivos já haviam dito que a presença de Alex na prova era a maior conquista a se esperar do rapaz naquele momento, e que certamente ele seria um dos grandes nomes do atletismo nacional para o próximo mundial.

Quando representantes do comitê organizador anunciaram o início dos preparativos da prova ele despediu-se do técnico com um abraço carinhoso:

- Alex, você sabe que tudo isso é mérito seu. Confie em você mesmo, por que eu confio.
- Valeu Marcão. O mérito pode até ser meu, mas a culpa a toda sua. - disse rindo.

Deixou o casaco do moleton com um dos voluntários do mundial e dirigiu-se a sua raia. Era o único brasileiro naquela classificatória. Ao som do tiro, correu tecnicamente. Utilizava o peso de seu próprio corpo para impulsionar-se para frente. A prova era rápida o suficiente para não sobrar tempo para pensar em nada antes de cruzar a linha de chegada. Olhou ansioso para o cronômetro digital, ao lado da pista. Tinha ficado em terceiro mas somente os dois primeiros de cada bateria estavam automaticamente na final.

- Desculpa Marcão, eu sei que você esperava pelo menos a classificação. - disse Alex um pouco cabisbaixo, voltando para a área de aquecimento.
- Porra Alê, do que você tá falando. Foi seu melhor tempo! Você ainda pode pegar uma vaga na final, por tempo. - respondeu o técnico, tentanto animar seu pupilo.

Quase uma hora depois realizava o mesmo ritual feito na classificatória. O tempo tinha lhe garantido a sétima raia na final. O nigeriano corria na quarta raia. Acenou tímido para a câmera quando anunciaram seu nome. Como o estádio já gritava, Alex não percebeu uma grande alteração de ânimos do público ao ouvir seu nome.

Preparou-se na raia. Pensou na imagem da padroeira guardada na mochila. Com o tiro, disparou pela pista. Olhava fixamente para a frente, sua mente estava completamente vazia. Segundos depois percebeu os flashes dos jornalistas, que normalmente confirmavam o final da prova. Caiu de joelhos no chão, estafado. Somente então olhou para o placar digital ao lado da pista. Não conseguiu achar seu nome onde ele deveria estar, quinto, quarto, terceiro, o nigeriano em segundo...
Sentiu seu corpo ser jogado contra o chão, quando o técnico pulou sobre ele, gritando e chorando. Somente então percebeu que as milhares de pessoas no estádio gritavam seu nome. No dia seguinte, todos os jornais estavam estampados com a foto de um herói ajoelhado no centro da sétima raia.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Os Fones Brancos

Saltou mais cedo do que o habitual da cama naquela terça-feira. Procurou sair do pequeno quarto sem fazer qualquer barulho, mas esbarrou numa cadeira cheia de roupas passadas na noite anterior. Assustado, olhou para trás. Os dois irmãos continuavam dormindo na outra cama de solteiro do quarto.
A roupa estava separada sobre o sofá da sala. No começo tinha sido terrível habituar-se a tirar a roupa do quarto para não acordar as crianças, mas depois de um mês isso já havia se tornado uma rotina que não o incomodava mais.

- Bom dia, mãe. - disse em um tom de voz ainda baixo.
- Bom dia, meu filho. - respondeu a mulher à beira do fogão. Ela esquentava água numa leiteira já meio enegrecida pelo fogo e pelo tempo. Usava uma saia verde já bastante gasta e uma camiseta com propaganda de um candidato nas eleições de seis anos atrás.

Simultaneamente, mãe e filho fizeram o mesmo movimento com a mão. Ela, ao desligar o fogo; ele, ao girar a maçaneta da porta:

- Não vai tomar o café hoje, Gilmar? - perguntou a mulher, segurando a leiteira com um pano de prato e virando-a sobre o coador preparado com o pó de café.
- Hoje não, Dona Zuleica. Quero chegar logo lá na empresa. - respondeu o rapaz, já com a mochila nas costas e metade do corpo do lado de fora da pequena casa.
- E porque essa pressa toda?
- É que hoje é dia de pagamento, mãe. Meu primeiro pagamento.
- Bom trabalho então. Tenha um bom dia! - respondeu ela, ouvindo a porta fechar às suas costas.

Enquanto observava o pó de café ceder ao calor da água fervente não pode deixar de pensar no quanto estava feliz. O menino era muito novo ainda. Só dezesseis anos. E tinha optado trabalhar por conta própria para ajudá-la. Depois de tudo que ele passara com o pai, antes da cirrose, e depois com o irmão mais velho, antes da cadeia.

Na rua, Gilmar esfregava os braços contra o corpo. A camisa de algodão azul clara não era exatamente quente, e a malha que a cobria também não segurava o forte vento que cortava o ponto de ônibus. Tinha ouvido numa televisão, ao passar em frente a padaria, que era uma das manhãs mais frias do ano. E ali, naquele ponto, graças a arquitetura dos barracos se lançando uns contras os outros, e todos contra a rua estreita, o vento corria canalizado, diminuindo ainda mais a sensação térmica.

Entrou no ônibus cumprimentando motorista e cobrador. Conhecia ambos, já que pegava a mesma linha, no mesmo horário há um mês, exatamente. Sentou-se num dos bancos da parte traseira, de onde podia observar cada um dos passageiros que entravam até que o ônibus ficasse lotado. Uma coisa comum a quase todos passageiros chamava sua atenção: os fones de ouvido. Quando o pai quebrou o rádio de pilha que tinham em casa, cinco anos atrás, ele prometeu que daria um desses "trecos de enfiar na orelha" pro filho, mas veio a doença. Desde então ficava observando os modelos que as pessoas usavam. Fios longos, curtos, brancos, pretos. Esses dias tinha visto, inclusive, um sem fio!

Desceu com alguma dificuldade do ônibus, espremendo-se entre as pessoas. Olhou no relógio de pulso, comprado em um camelô. Cumprira sua meta, chegar meia hora antes no trabalho. Olhou parao grande prédio, com seus vidros negros, e entrou. Tirou do bolso o crachá novo - tinha trocado o provisório por este há apenas 4 dias. Desceu as escadas e foi direto para a sala do cordenador do programa dos aprendizes.

- Bom dia, Seu Carlos. - cumprimentou, efuzivo.
- Bom dia, Gil. Chegou mais cedo hoje né? - respondeu o homem, ocupando quase toda a sala.
- Só um pouco. Pequei pouco trânsito, Seu Carlos.
- Que bom, Gil. Melhor mesmo, assim eu já te entrego o seu cheque e você se livra da fila que me atrapalha a vida todo dia dez. - disse o homem abrindo a gaveta da mesa a sua frente. - Um mês já! Tá gostando do trabalho?
- Tô sim, Seu Carlos. O pessoal aqui da empresa tá me ensinando um monte de coisas. - respondeu o garoto.

Carlos percebeu que ele queria dizer alguma coisa mais, mas parecia escolher as palavras certas.

- Desembucha logo, filho. O que você quer?
- Têm como o senhor me dar uma carta, alguma coisa com o quanto eu recebo seu Carlos? É que hoje eu vou passar numa loja lá perto de casa, pra comprar um MP3, e eles falaram que querem uma carta daqui pra poderem parcelar pra mim. - disse o rapaz, acanhado.
- Mas é lógico, Gil. Peço pra Renata fazer um holleritizinho pra você hoje mesmo. Passa aqui na hora do almoço.
- Obrigado, viu Seu Carlos.

Por volta das quatro horas, quando ia embora todos os dias, passou novamente na sala do Senhor Carlos, pegou o hollerith prometido e saiu do prédio. No ônibus, muito mais vazio devido ao horário, leu e releu o papel impresso com seu salário. Sorriu. Deu sinal para o motorista parar o ônibus, cerca de seis pontos antes daquele próximo a sua casa.

Entrou na loja, que ocupava quase toda a esquina. O atendente, um homem magro e já meio calvo, o abordou logo na entrada. Aquilo parecia o paraíso para Gilmar. Eram tantos modelos e cores. No fim, escolheu um dos que tinha o fio branco. Sempre tinha achado os de fio branco mais bonitos. Não sabia muito bem o porque, mas o vendedor ainda conseguiu fazer um preço especial para o modelo que já vinha com rádio embutido, ia pagar só quinze reais a mais, por ele. Ainda na porta da loja tirou o aparelho da caixa. Com as mão tremendo de alegria encaixou o fone no aparelho e ligou-o. Sintonizou numa das estações que se lembrava do número e sorriu. O som era claro e tocava uma das músicas que ele mais gostava. Aumentou o volume no máximo, para ver até onde o aparelhinho alcançava. Enfiou a caixa e outros pequenos plásticos na sacola e pisou na rua para atravessá-la, de volta ao ponto.


Com o telefone na mão, Dona Zuleica soltou o copo de suco de goiaba que segurava. Ao se espatifar no chão, o líquido escorreu vagarosamente pelo chão torto e empoçou-se num canto da sala. Também vagarosamente escorria o líquido vermelho contra o asfalto. O ônibus estava parado poucos metros a frente, e a multidão aglomerava-se.

- Acho que ele não ouviu a buzina. - disse o motorista, olhando para o corpo estendido próximo a sarjeta. Podia-se escutar o som alto que vinha dos fones de ouvido brancos largados sobre a poça vermelha.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Jabá!

O intuito desse blog nunca foi fazer propaganda de nada (além dos contos deste que vos escreve). Dito isso, fo**-se o intuito do blog, ele é meu e eu faço propaganda do que eu quiser...

Indico a leitura do livro "Dias Contados - Contos sobre o Fim do Mundo", Editora Andross.
Os motivos pra lê-lo? Bom, primeiro porque o tema "fim do mundo" é sempre interessante. Segundo, porque é uma antologia de contos de novos autores, e é sempre legal dar um apoio pra todos nós que estamos começando a escrever. E terceiro, porque um GRANDE amigo meu tem um conto publicado lá, e é MTO BOM!


Para mais informações, é só clicar neste link da Livraria Cultura.

E só pra terminar o assunto, segue o trailer de 2012 - novo filme de Roland Emmerich (Independence Day, O Dia Depois de Amanhã). O que que o filme tem a ver com o livro? Nada diretamente, mas é mais um filme catástrofe, as imagens são mto boas e dá uma vontade a mais de comprar e ler o livro.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

R.I.P.

Aqui jaz uma piada ruim.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Um Homem Bom

- Você não pode fazer isso! - respondeu ele desesperado. Apoiava-se contra a parede escura como se esperasse que ela cedesse.

- Me dê ao menos um único por motivo para eu não fazê-lo. - respondeu o outro. Mesmo mantendo seu olhar firmemente fixo nos olhos do homem que se espremia no canto sujo, caminhava com calma, medindo cada centímetro do espaço onde pisava. A pistola apontava para o peito do homem.

- Pelo amor de Deus! Não! Você não é assim, não é da sua índole. - Continuou o outro, aumentando o som da voz quase ao tom de gritos; uma tentativa desesperada de que alguém o ouvisse. Seu carrasco abriu então um largo sorriso:

- O que você sabe sobre índole? - perguntou, sentando-se sobre um grande rolo de fios de alta-tensão que estava próximo - Aliás, o que você sabe sobre a minha índole?

- Paulo, por favor! Me escuta. Você é um marido fantástico, um pai de família exemplar, um integrante ativo na comunidade - respondeu pausadamente, procurando palavras - sei lá! Você é tanta coisa!. Você simplesmente só não é assim, um assassino.

- Você se esqueceu de dizer como eu era um bom sogro.

- Sim, sim. Quase como um pai para mim!

O grande galpão no qual os dois se encontravam era parcamente iluminado por uma série de lâmpadas fluorescentes suspensas do teto, falhavando ou se apagando sozinhas aqui e alí. O espaço havia sido uma grande indústria têxtil mas já há mais de duas décadas estava abandonado. Nos últimos cinco anos, contudo, a prefeitura vinha o utilizando como um anexo ao almoxarifado municipal. A escolha, na verdade, fora uma tentativa infrutífera de coibir o fluxo alto de traficantes que usavam da edificação para vender seus produtos.

Paulo levantou rindo e fitou o outro homem. O riso vagarosamente sileciou, observava-o cuidadosamente. Ver os músculos do outro se contraírem de medo, esforçando-se para se manter de pé sobre um par de pernas que tremia visivelmente, trazia-lhe um prazer indescritível. Seus olhos brilhavam na penumbra da fábrica abandonada.

- Eu não sou um assassino? - perguntou enquanto aproximava-se mais. A arma sempre firme na altura do peito. - Talvez não seja mesmo. Mas até aí, você também não era o que você é hoje, Marcão.

- Para com isso. Você é um homem ético Paulo. Um ser completamente racional.

- Isso! - interrompeu-o bruscamente. O tom de voz alterando-se para um momento de quase alegria. - Ética e racionalidade! Será que essas duas coisas podem sempre andar juntas? Não, melhor. Eu te afirmo, essas duas coisas andam perfeitamente juntas. Veja, Kant dizia que um ato só possui valor moral se feito em nome do dever, e não de motivações pessoais e que a racionalidade é que poderia esclarecer a posteriori quais eram estes deveres. E a parte que eu acho que fecha perfeitamente o nosso caso: que uma das premissas para que a ação fosse moralmente aceita seria a necessidade de que sua motivação fosse cem porcento expansível a qualquer ser humano, em qualquer sociedade. Compreende a sutileza disso?

Marcão ficou em silêncio. Seu olhos marejaram, o que rapidamente se tornou em choro tórrido. Os soluços do homem ecoavam pelo ambiente. O barulho de ratos e alguns pássaros que voavam pelo teto ficavam diminuídos frente a intensidade de suas lágrimas.

- Você não entendeu, não é? Vou ser mais claro. Qualquer um poderia dizer que meu ato aqui é irracional. Que estou sendo levado pelo que você fez a ela. Mas, e se olharmos por outra perspectiva? E se pensarmos que minha motivação aqui obedece ao dever de respeitar garantir a vida do próximo, a integridade da família. Mais ainda, e se fazendo isso, eu só esteja estendendo à toda a sociedade o direito de andarem na rua sem temer que possam sofrer o mesmo que minha querida Maria sofreu.

- Seu Paulo, você está fora de si! A polícia vai chegar aqui a qualquer momento.

- Não Marcos, felizmente eu não estou fora de mim. Sabe que, no dia em que os policiais bateram a minha porta para me comunicar o que você fez à Maria eu fiquei fora de mim. Aquele dia sim eu fiquei. - disse vagamente, como se pudesse rever o momento - Mas assim como Edmond Dantes teve tempo para planejar sua volta por cima. Eu tive que ter tempo para entender a minha. Naquele dia eu não teria tido coragem de fazer o que eu vou fazer hoje. Você está certo quando disse que eu sou um homem bom. Exatamente por isso eu precisava deste tempo para me mostrar que eu não estaria errando ao fazer isto.

- Mas você está errando! Você enlouqueceu com a morte da Maria. Você não entende que eu também sofri muito pelo que eu fiz!

- Não acho que seja a hora para discutirmos isto. Esse tempo já passou, mas os advogados dos seus pais conseguiram impedir que nós tivessemos esta conversa antes. Sabia que, o tipo de prazer que eu sinto agora é quase igual ao prazer que você deve ter sentido enquanto estuprava a Maria.

- Louco! Você é um louco!!! Me deixa sair daqui! - disse, tentando movimentar-se rente a parede em direção a uma grande porta de madeira que estava a cerca de oito metros dos dois.

Abaixando levemente a arma atirou na perna do outro, fazendo-o cair no chão. Seus gritos fizeram os pássaros voar loucamente, batendo contra o teto de alumínio e causando uma algazarra de sons no galpão. Paulo continuou falando, enquanto evitava pisar no sangue que agora escorria próximo aos dois.

- Ou eu sou um homem bom, ou um louco. Simplesmente não posso ser os dois, Marcos. Mas continuando do ponto que parei antes que você me interrompesse. Li várias pesquisas e uma das que mais me chamou atenção foi essa que afirmava que o prazer de alguém que faz justiça com as próprias mãos é biologicamente igual ao prazer sexual.

De repente uma voz rouca soou pelo galpão, acrescentando mais um som ao barulho que se ouvia do lado de dentro:

- Atenção, é a polícia! Este galpão está cercado. Todos que estiverem aí dentro saiam com as mãos sobre a cabeça! - dizia a voz amplificada por um megafone.

Marcos riu um riso desesperado do chão onde se encontrava:

- Você tá fudido agora! Seu monstro!!

- Monstro, eu? Monstro por estar matando o homem que matou minha filha? Monstro por matar o "ser humano" que deu dezoito facadas na menina após estuprá-la. Você era o namorado dela, ela confiava em você. Não sei se as pessoas que lerem o jornal amanhã vão me achar um monstro.

- EU SOU MENTALMENTE INSTÁVEL. VOCÊ VIU NO LAUDO QUE OS ADVOGADOS APRESENTARAM PARA O JUIZ! SOCORRO!! A POLÍCIA CHEGOU E VOCÊ TÁ FUDIDO!!

- Desculpe Marcos, mas um louco não tem a menor idéia de sua loucura. E antes que você se preocupe, minha intenção nunca foi fugir. Eu quero ser preso, quero conviver por mais muitos anos sentindo o gosto de pagar conscientemente por este momento. Só preciso saber de uma coisa antes de tomar a decisão de puxar este gatilho: você se arrepende?

- Muito Paulo, demais. Me arrependi desde o primeiro momento que voltei a mim. - respondeu rapidamente, atropelando palavras. Sua feição era a de quem havia encontrado esperança. Expressão igual tomou o rosto de Paulo.

- Que bom! Por isso eu te perdôo. - respondeu, vendo os olhos do homem jogado ao chão arregalarem-se. - Mas para minha vingança ser completa eu sou obrigado a te privar deste sentimento de redenção.

O som dos dois tiros ecoou pelo galpão. Segundos depois a polícia inrompeu pela pesada porta de madeira esfacelando-a. Paulo apenas jogou a arma ao chão e erguei os braços, se deixando algemar. A foto que estampou o jornal no dia seguinte era dele sendo escoltado por três policiais. Sua feição, contudo, era o que mais chamava atenção: um sorriso leve e um olhar sereno e calmo, fitando o nada.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Visionário

Texto temporariamente retirado para manutenção. Lamentamos a inconveniência.

Alguém tinha alguma dúvida?

Bom, há algum tempo foi anunciado que o Tim Burton ia dirigir a nova versão em live action de Alice no País das Maravilhas. O grande problema são dois: É O TIM BURTON! E É ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS!!!
Não, antes de qualquer equivoco eu gosto bastante do Tim Burton, mas o cara é louco.
Toda essa enrolação, na verdade, foi pra apresentar a foto abaixo, do Johnny Depp caracterizado como Chapeleiro Maluco.
Dá ou não margem para ter medo (não o mesmo tipo de medo com relação aos filmes do Michael Bay) desse filme?!



Mais fotos aqui.

domingo, 21 de junho de 2009

A Rua das Oliveiras

- Não, naquela época nem chamavam ele de Zé do Caminho. Pelo que me falaram foi uns dez anos atrás.



Dizem que já ia pela terceira semana de julho quando tudo começou. A tarde estava muito mais fria do que o normal quando o Zé foi chamado até a sala do chefe. As paredes brancas e a mobília toda em alumínio tiravam mais alguns graus de temperatura do ambiente.

- Boa tarde, Sr. José!

- Boa Tarde, Seu Márcio. - respondeu o homem ressabiado, segurando o boné azul estampado com a marca de um posto de gasolina a frente do corpo.

- Então, como o senhor deve saber os tempos estão difíceis. As vendas tem caído muito. O dólar desparou absurdamente recentemente.

- É mesmo, é? - disse o homem, sem ter a menor noção do o outro falava. Na verdade o Zé prestava mesmo era atenção nas listras da gravata do outro, e de como elas lhe causavam vertigem.

- ... então, e por tudo isso, Sr. José, eu queria informar para o senhor que a empresa está o desligando da linha de produção a partir da próxima segunda-feira.

- Como é que é? Desligando assim, de me demitindo?

- Infelizmente é isso mesmo Sr. José.

- Mas, eu nunca fiz nada na vida. Só sei é trabalhar por aqui mesmo. Não tem como demitir outro não?

- Na verdade o senhor não é o único. Vários também serão demitidos.

- Tá, então. - Virou as costas e saiu sem fechar a porta.

Caminhou vagarosamente até a saída da fábrica. Olhou para trás uma última vez e se pôs a andar novamente. Antes que alcançasse a esquina um homem o parou no caminho. Usava apenas uma bermuda laranja e camiseta preta. Devia ter no máximo uns 25 anos.

- Licença senhor, por onde fica a rua das Oliveiras?

- Opa, essa é aqui pertinho. - respondeu o Zé, articulando amplamente os braços para mostrar o caminho. Despediu-se do estranho e continuou seu caminho para casa.




O homem de barba baixou o copo e olhou para o outro, incrédulo:

- Então se tá me falando que o Zé do Caminho ficou louco por que perdeu o emprego? Se for assim a gente té ferrado.

- Tá nada Tião. Esse negócio de férias coletiva é normal nesses negócio de crise igual a gente tá agora. E outra cabra, eu nem terminei de contar ainda a história do Zé.



Nas primeiras semanas o Zé aproveitou o desemprego. Acordava tarde, ia para o bar todo final de expediente encontrar os amigos que não tinham saído da firma. O problema foi quando o fundo de garantia acabou e o dinheiro começou a ficar escasso.

- Mais que droga Matilde. Tô te falando que eu saio todo dia pra procurar emprego, mas ninguém que pegar um burro véio igual eu.

- Tá, mas se você não botar dinheiro nessa casa pra alimentar teus filhos eu levo a Giusleide, a Marinela, o Cleosmar, o Wagnaldo e o Juninho pra Paraíba de volta. E você fica!

- Faz isso não minha nega!

- Faço, e faço com gosto.

Dito e feito. Um mês e meio depois dessa conversa a Matilde levou as crianças de volta pro sertão da Paraíba deixando o pobre sozinho na capital. Ele ainda correu pra rodoviária quando soube que ela tava com os meninos por lá, mas só chegou a tempo de acenar para eles de longe, enquanto o ônibus partia.

Na escada rolante, saindo das plataformas de ônibus um senhorzinho encostou a mão no ombro dele.

- Licença meu filho, sabe onde fica a rua das Oliveiras?

- Vixi meu senhor. Você tá longe demais da rua das Oliveiras, faz assim... - Enquanto explicava o caminho pro homem, algumas pessoas em volta olhavam meio assustadas pro Zé. Mas nada que fizesse ele perceber algo.




- Olha só. Eu não imaginava que o Zé tinha passado por tudo isso não. Pra mim ele sempre foi mendigo mesmo. Sabe, tem uns que a gente acha que são nascido e criado mendigo.

- Então, eu nem lembro quem me contou tudo isso. Olha lá o Zé - disse apontando para o outro lado da rua.

Na calçada contrária à do bar passava um homem velho. As roupas imundas tinham dizeres da campanha presidencial de três anos atrás. A barba era espessa, e se tinha a nítida impressão de pequenas folhas e gravetos estavam enroscadas nela. Ele balançava os braços e apontava direções calmamente. Como se ensinasse um caminho para algúem. Depois continuava a andar cambaleando, a garrafa de cachaça numa mão e o bonezinho azul na outra.

- Quer saber de uma coisa Tião, to indo embora, a Neusa deve tá esperando com as panelas no fogo lá em casa.

- Tô indo também. Tá meio tarde já.

Os dois homens pagaram a conta e saíram do bar, na esquina de uma das ruas do centro da cidade. Andaram por três ruazinhas de pouco movimento, caminho que era comum até a casa dos dois. Alguns metros antes de chegarem na esquina onde iriam se separar, contudo, foram abordados por uma mulher. Ela vestia calça jeans e uma camiseta rosa com um gato desbotado estampado na frente.

- Oi, não sei se vocês podiam me ajudar. Eu preciso chegar num lugar, mas não to achando a rua.

- E qual rua é? - perguntou Tião à mulher.

- Não lembro direito, pera aí. - disse, pegando um papel do bolso - Aqui, achei. É na rua das Oliveiras.

Os dois homens se entreolharam e começaram a gargalhar muito alto. Algumas pessoas que passavam pela viela ficaram olhando assustadas.

E a gente finge que acredita...

Não tinha como não citar isso aqui. Nas últimas semanas, durante a divulgação de seu novo blockbuster o Sr. Michael "Boom" Bay deu a seguinte declaração:

"É fácil fazer um filme de arte numa vinícola na França. Mas as pessoas não têm ideia de como é difícil fazer um Transformers. Os críticos falam mal sem sequer terem visto o filme. Depois de três anos e meio, acho que já tive o bastante do mundo de Transformers. Preciso fazer algo diferente agora, algo sem explosões"

Agora, contextualizando: Michael Bay é o culpado por Pearl Harbour, Armaggedon, A Ilha, Transformers. Resumindo e plagiando o Omelete, se isso for verdade vai ter muito dublê feliz da vida por aí!

BOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOM!

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Desafio de Palavras (I)

Contextualizando... Eu, ele e ele topamos um desafio pra animar os três blogs. Uma vez a cada... a cada... tá, ainda não tem uma frenquência definida, mas de vez em quando um dos três vai propor uma lista de palavras completamente aleatórias para os outros dois escreverem um post. Esse daqui é o primeiro dessa brincadeira. As palavras em negrito são as da lista que ele criou:

-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-*-

Ela subiu a escada rolante pulando degraus. Ao sair novamente no nível da rua olhou em volta. A longa avenida estendia-se para os dois lados.
As pessoas passavam por ela apressadamente, esbarrando-se. Ninguém notou o olhar de desespero que a jovem lançava ao redor, vasculhando minuciosamente o ambiente como uma raposa observa um cacho de uvas. Finalmente avistou o que procurava, um telefone público.

- Alô?

- Instituto Médico Legal, Sandra, boa tarde. - respondeu a voz anasalada do outro lado.

- Sandra, pelo amor de Deus, eu preciso da sua ajuda. - continuou a jovem aflita.

Após um longo bocejo a mulher respondeu do outro lado:

- Pois não?

- Escuta, meu marido! Ele estava falando comigo no telefone, estava dirigindo, tinha acabado de sair do estacionamento do hospital. Mas de repente a ligação cortou! Pareceu um barulho de acidente, foi horrível.

- Na tarde de hoje quatro corpos foram trazidos para cá, senhora. - respondeu a outra, sem demonstrar qualquer preocupação. - Mas... a senhora já tentou ligar de volta?

- A bateria do meu celular acabou. Mas eu tentei sim. Pelo amor de Deus, Sandra, me fala como são as pessoas que deram entrada aí hoje.

- Não, não... Não deram entrada. A gente costuma brincar que aqui eles deram saída. Sabe como é, né?

- Sei, sei! Mas como eram os homens?

- Sabe que hoje teve um caso engraçado. Um dos homens, ele era bem gordinho. Quando chegou aqui o legista iniciou o procedimento padrão para morte por engasgamento.

- Engasgamento? Não era meu marido então, e os outros?

- Calma. Na verdade ele não morreu engasgado!

- Não?

- Nããããão!!! Você não sabe. Ele morreu na mesa do restaurante enquanto comia uma esfiha. Por isso que o Rafael achou que fosse engasgamento. Mas

depois ele descobriu que a traquéia do homem estava completamente fechada. Acredita?! O homem tinha alergia a diclofenaco potássico! Mas, ainda não descobrimos como ele tomou uma quantidade tão grande do remédio.

- Sandra. Por favor, se concentra em mim. Esse definitivamente não é meu marido. Me fala do outro homem!

- Tá! Calma! Bom, teve o homem da peruca também. Quero dizer, não era totalmente homem. Ou era homem mas não queria ser. Você entendeu?

- Não, não entendi, mas meu marido não usava peruca. Próximo!

- É sério. Eu explico. Chegou aqui usando um vestidão vermelho longo. Lindo! Uma cabeleira loira muito bem cuidada. Mas quando trocamos ela, ou ele, de maca, a peruca caiu. Aí que a gente percebeu que era um homem.

- Tá bom. Tá bom. Era um travesti. Entendi. Acredite, minha querida, meu marido não era um travesti.

- Que bom né. - respondeu a mulher, dando uma longa gargalhada. - Mas olha, vamos facilitar. Qual era a idade do seu marido?

- Trinte e Sete! Algum dos outros dois tem mais ou menos essa idade?

- Sim, sim. Os dois!

- Mas que droga! Então porque você perguntou?

- Só quis ajudar. Desculpa!

O rosto da jovem ficou subitamente vermelho. Um escarlate intenso corava a mulher enquanto o sangue corria mais fortemente por suas veias.

- Sandra. Vamos fazer assim. Eu vou te dar algumas características do meu marido e você me fala se ele é um dos outros dois homens que estão aí.

- Tá bom.

- Ele é alto. Cabelo castanho escuro, mas já tinha alguns fios grisalhos.

- Nossa!

- Que foi? É ele?

- Não! Uma caixa de algodão que tinha chegado ontem aqui sumiu! Acho que fomos roubados. Tenho certeza que foi por causa do espelho que eu quebrei ontem a noite. Você sabe né? Acho que é na mitologia grega que fala dessas coisas né? De ter azar porque quebrou o espelho.

- NÃO! NÃO É A MITOLOGIA GREGA QUE FALA ISSO! PELO AMOR DE DEUS, ME OUVE. MEU MARIDO, O CARLOS, É MÉDICO. OTORRINOLARINGOLOGISTA!

- Escuta aqui minha filha! Você pode ficar toda bravinha aí. Pode até gritar, tô acostumada já! Agora, me chamar de otorrino-sei-lá-o-que! Aí já é demais!

A jovem ficou muda do outro lado. Pensou em pelo menos um milhão de coisas para responder para a outra, mas apenas suspirou.

- Eu não estou te xingando. Otorrinolaringologia é a especialidade do meu marido. Sabe, nariz, ouvido e garganta!

- AHhhhhhhhhhhhhhhhh! Claro que eu sei. Teve até uma história estranha uma vez. Meu namorado é mais novo que eu, sabe. E teve um dia que nós estavamos conversando, e ele ia me pedir pra ir num desses médicos porque ele fala que minha voz é meio irritante. Mas aí, antes dele falar, eu tive um deja vu. Ai, como eu sabia que ele ia dizer isso, eu briguei com ele antes! Ééééééééé! Ele ficou todo assustadinho porque eu previ o que ele ia dizer.

- Sandra. - é a última pergunta que eu faço - Algum dos dois corpos que estão aí é de um médico?

- Não, não é não! São dois mendigos. Alô... Alô????? Alôôôu! Mal educada! Desligou na minha cara!

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Wall.e por Alan Moore?

Bom... essa é definitivamente pra provar a importância da montagem e trilha sonora(inclusive e/ou principalmente de um trailer)!!!

WALL-E / Watchmen Mashup Trailer from Andrew Buckle on Vimeo.

domingo, 3 de maio de 2009

A dançarina

Não havia palco nem cortinas. Para os artistas, um pequeno biombo montado com placas de trânsito velhas e para a público o chão frio e acolhedor da praça. Eram muitos, sentados e em pé. Alguns passavam e nem se davam ao trabalho de olhar o que acontecia. Outros, contudo, vinham e aconchegavam-se em meio a seus novos colegas desconhecidos.

A audiência ainda não havia terminado de aplaudir o último artista quando ele entrou em cena. O casaco roto e os maneirismos ao andar lhe faziam parecer saído de algum século passado. Andou ao centro da roda formada pelas pessoas e parou.
Olhou para baixo. Estendeu as mãos à frente do corpo e as recolheu em um abraço. Aguardou. Aguardou. Jogou os braços para cima, soltando-se de joelhos no chão. Como que respondendo à dramática cena, a caixa de som instalada no passeio entoou uma melodia de poucos acordes, pesada.

Ele olhou na direção de seu público. Nos olhos de cada um deles. O incômodo fazia com que as pessoas desviassem o olhar ou sorrissem umas para as outras, evitando-o. Ela não. Ela encarou-o fixamente.

Ele levantou-se e com movimentos leves e circulares chegou até a jovem, levantando-a. Abraçaram-se e rodopiaram de volta ao centro das atenções. A música, agora mais melodiosa, lutava para propagar-se pela madrugada gelada.

O frio, contudo, não parecia atingir o casal, que agora dançava finamente. Os passos, como que coreografados, encantavam a platéia, que assoviava e batia palmas.
Ele já não os ouvia. Olhava ao redor e no lugar de seu público, haviam pequenos pontos luminosos que brilhavam na escuridão. A música etérea embalava-os. O chão tornara-se macio e branco.

Um grito:

- TIREM ELE DAÍ! NEM ENGRAÇADO ELE É!! - gritou um homem que passava ancorando-se em dois amigos, ambos segurando garrafas parcialmente vazias.

Os olhares de reprovação de muitos dos espectadores eram em vão.

- PALHAÇO SEM GRAÇA! DANÇAR COM ESSA BONECA DE PANO ATÉ EU CONSIGO! - gritou mais uma vez antes de ser afastado de lá pelos outros dois.

A música desceu gradualmente, até parar. Em seu último rodopio, deitou-a no chão. Seu corpo costurado jazeu inerte sobre a pedra fria. Ele tirou o chapéu e sorriu para o público. A maquiagem branca, já um pouco borrada, contrastava com o batom vividamente vermelho. Curvou-se e agradeceu as palmas que agora voltara a ouvir. Pegou a boneca e saiu de cena.

Detrás do biombo, enquanto tirava a maquiagem com uma toalha ainda ouviu um casal que passava criticar impiedosamente o bêbado que atrapalhara o espetáculo. Sorriu. Trocou a roupa, beijou a mulher de pano no rosto e olhou para cima. A escuridão da madrugada dava lugar aos primeiros raios da manhã.

- Desculpe-me, você sabe como é. Ela vai estar me esperando, ela sempre fica. - disse olhando para a boneca. - Isso, não fique triste. Amanhã dançamos de novo.
- Sim, sim! Te amo mais do que ela, mas nunca conte isso, ouviu?! - continuou, após uma pequena pausa encarando-a.

Saiu do pequeno camarim improvisado rindo de si mesmo e andou até a mesma esquina onde os braços ternos o esperavam mais uma vez.


Obs.: Texto dedicado à Virada Cultural 2009.

sábado, 11 de abril de 2009

Jogando R.I.

Enquanto não sobra mais tempo para escrever...
Jogo 100% R.I. ... Vale a pena gastar alguns minutinhos com ele! Abaixo minha pontuação...




This Traveler IQ was calculated on Sunday, April 12, 2009 at 04:38AM GMT by comparing this person's geographical knowledge against the Web's Original Travel Blog's 3,904,806 travelers who've taken the challenge.


sábado, 14 de março de 2009

Da série: E se...

E se Picasso tivesse pintado para a DC Comics...

sábado, 14 de fevereiro de 2009

No Cáis de San Blás

Ele se levantou da cama e pôs os pés sobre o chão gelado. Vestiu a camisa branca puída e jogou o casaco surrado por cima. Calçou os sapatos pretos que estavam ao lado da cama. Ela, do outro lado do cômodo, olhou para ele e sorriu, fazendo barulho com a panela que preparava para esquentar água.
Pela única janela, podia-se ver que o sol ainda não tinha lançado nenhum raio e a neblina densa cobria toda a extensão da rua que dava no porto. Tomaram o café silenciosos. Ela encarava-o com os olhos brilhando, um misto de amor e devoção.

- Você precisa mesmo ir? - perguntou ela com a voz embargada.
- Você sabe que sim, não podemos mais morar nessa espelunca. Mais três meses no máximo e conseguimos juntar o dinheiro para nos mudarmos daqui. - respondeu ele sem olhar para a mulher, mordendo novamente o pedaço de pão seco que comia e observando a janela.
- Mas nós estamos bem aqui. Você sabe como eu morro de medo quando você viaja em dias assim.
- Não seja tola. Dias assim são os melhores. Os peixes nadam mais na superfície porque a água fica gelada por aqui também.
- Tudo bem, mas é muito mais perigoso. Quero dizer, essa região é muito cheia de pedras.

A chama da pequena vela já quase no fim apagou-se com um sopro de ar gelado que entrou por entre as frestas da porta velha. Ela puxou o xalé sobre os ombros. A peça destoava do casal e da casa. A lã macia e amarela estava nova, presente de uma mulher para a qual ela trabalha há alguns anos. Levantou-se lentamente e levou as duas canecas para a pia. As paredes escuras eram opressivas, mas ela tentava disfarça-las, trazendo flores colhidas no caminho do porto até a casa.

- Eu vou até o porto com você.
- Não precisa, está muito frio. E ainda nem amanhaceu.
- Mas eu quero. - respondeu ela rapidamente.
- Que seja mulher, você está estranha hoje. - riu-se o marido indo até a porta e abrindo para que ela passasse.

Saíram da casa sem trocar palavras. Percebia-se que o vento gelado a fazia tremer um pouco, mas ela ignorava. Caminhou ao lado dele até chegarem no porto. Lá o silêncio era cortado pelo grito dos homens jogando seus equipamentos no pequeno barco pesqueiro. Gritavam e riam como se continuassem bebendo desde a noite anterior.
Algumas prostitutas ocupavam um ou outro espaço entre as cargas, rindo e se oferecendo para os pescadores. Instintivamente ela se abraçou nele, difícil dizer se para se esquentar ou para mostrá-las de que aquele pescador tinha uma esposa. Depois de algum tempo arrumando os últimos detalhes ele voltou para o banco onde ela ficara esperando e abraçou-a. Ela chorou.

- Eu vou voltar! Não chore, por favor, eu juro que vou voltar! - o vento forte bagunçava seu cabelo negro, enquanto ele tentava fazer com que ela parasse de chorar.
- E eu juro que vou te esperar. Pelo tempo que você ficar no mar eu vou esperar.

Ele desenlaçou-a de seus braços e saiu para a estreita passarela de madeira que saia ao barco. Haviam várias daquela no porto. De algumas restava apenas a estrutura. Diziam que quando um barco não voltava do mar a plataforma da qual ele saíra estava condenada. Ela esperou o barco soltar as amarras e correu pelas tábuas de madeira até o fim da passarela. Acenou para ele por muito tempo, até que o barco se tornasse um ponto no horizonte.

Ela voltou pra casa de cabeça baixa. As ruas que circundavam o cáis eram estreitas e as casas, geralmente sobrados, eram velhas e se projetavam para rua, dando uma impressão de que o caminho era ainda mais apertado. Almoçou e jantou sozinha durante os cinco dias que ele ficaria no mar, mas toda tarde ia até o cáis e sentava-se na plataforma de madeira.
Como era de hábito, usava sempre o mesmo vestido branco que vestira no dia em que ele zarpou. Assim, acreditava ela inocentemente, ele conseguiria a reconhecer de longe, mesmo com outros mulheres e prostitutas que estivessem por perto.

Mas o quinto dia chegou e se foi. E o barco não chegou naquela tarde. Sentada no cáis, ela não se mexeu. Continuou esperando até o dia amanhecer novamente. Pequenos caranguejos brancos subiam pela madeira e alcançavam a barra do vestido da jovem, arrancando-lhe algumas linhas e desfazendo a renda. No meio da manhã a fome foi mais forte do que a vontade de ficar ali, e ela voltou para casa.

Durante a tarde, porém, voltou para o porto e sentou no mesmo ponto que ocupara na noite anterior. Mas o barco também não chegou aquele dia. E o que a princípio era uma opção da mulher tornou-se uma obrigação. Saia de casa todos os dias no meio da tarde e corria ao porto sentar-se na última tábua da passarela de madeira. Enquanto ficava lá, observou outra estrutura de madeira ser erguida alguns metros daquela na qual estava.

A semana terminou, e a próxima também, e depois o mês. Ela, contudo, não falhava um dia em sua solitária rotina. Sentava-se e esperava até o meio da noite. De repente, parou de trabalhar pelas manhãs. Preferia ficar em casa e arrumá-la para quando o marido voltasse. Precisava ter cuidado para não perder o horário do barco. Algumas pessoas tentaram convencê-la a parar de esperar, mas ela ria:

- Não. Eu sonhei que ele ia voltar hoje a tarde.
- Mas já faz mais de seis meses! Você não pode continuar vivendo assim.
- Claro que posso. Porque ele jurou que ia voltar, e eu sei que vai voltar. E vai ser hoje. O que você acha dessa flor? Vou prendê-la ao cabelo para agradá-lo.

Mais dias e meses se passaram. Aos poucos ela emagreceu. Continuava a usar o mesmo vestido branco todas as tardes. A barra já estava completamente estragada pelos caranguejos, e o branco fora substituído por um tom amarelado que escurecia até o marrom no que restara da barra. Paulatinamente, também, a mulher deixou de conversar com as pessoas. Apenas sorria.

As crianças do povoado acostumaram-se a ir até o porto e tirar algumas tábuas do caminho, fazendo com que ela tivesse que saltar alguns espaços para chegar até o local onde sentava todas as tardes. Enquanto as mulheres do povoado, consternadas, levavam comida e roupas para a casa da "louca do cáis", como começou a ser chamada no meio do segundo ano. Não faltou de ir ao cáis nem mesmo no dia em que o médico que visitava a vila a cada quinze dias tentou explicar-lhe que estava ficando doente.

Os anos passaram e o cabelo da mulher já deixara de ser castanho, mesclando-se a longos fios brancos. O vestido já rasgado em várias partes, era apenas costurado a um novo pedaço de tecido branco. As pessoas nem se lembravam mais ao certo o motivo, mas ela fazia o mesmo caminho todos dias, de sua casa ao porto. Numa tarde de abril, um pequeno furgão branco estacionou próximo ao porto, e dois homens desceram. Caminharam pelas tábuas já meio podres, que rangiam e cediam com seu peso.

- Senhora, gostaríamos de levá-la para um lugar mais seguro. - disse um dos homens.
- Por favor, se a senhora nos acompanhar de bom grado, nem precisaremos colocá-la na camisa. - emendou o outro, segurando o item entre as mãos.

A mulher, porém, não respondeu. Entretanto, quando os homens seguraram-na pelos braços ela começou a gritar e espernear. A população que aglomerava-se próxima ao caminhão começou vaiar os homens. Ela chorava, mas era fraca perto dos dois. Alguns homens que assistiam a cena chutavam a lataria do furgão.

- Soltem a louca do cáis. - gritava a multidão que cercava o furgão. - Ela nunca nos atrapalhou! DEIXEM ELA AQUI!!

A algazarra que se seguiu foi imensa. Os vidros da caminhoneta foram quebrados e os pneus furados. O motorista ainda tentou arrancar, mas levou um soco pelo vidro e perdeu a consciência. Destruíram a maçaneta da porta traseira do furgão e abriram-na. A mulher, ao ver a parca luz do crepúsculo levantou-se. O rosto ainda embanhado em lágrimas. Saiu do furgão, enquanto a população local abria espaço para que ela passasse. Sem dizer uma única palavra ela caminhou de volta ao porto, passou pelas tábuas de madeira e sentou-se no cáis. Olhando fixamente para o mar a espera do barco que ainda não chegara. Naquela noite houve festa no pequeno vilarejo. Mas ela não participou. NO horário habitual voltou a sua casa e dormiu.

Seus cabelos já eram totalmente brancos naquela época. A tarde estava horrível. Chovia a três dias consecutivos. O tempo estava tão fechado que a iluminação das ruas tivera de ser acesa as dez horas da manhã. A tempestade caia forte, e os raios cortavam o horizonte. Independente disso, a mulher saiu de casa com seu vestido branco. A névoa impedia de se ver a um palmo de distância. Ainda assim, ela caminhou até o porto e sentou-se no mesmo lugar. as águas revoltas atingiam-na a face, mas ela não se importava.

Na manhã seguinte, quando as pessoas saíram a rua, boa parte da cidade estava arrasada. Tetos haviam sido arrancados e vidraças foram quebradas pela força do vento. A velha passarela de madeira, contudo, estava intacta. Mas a mulher não voltou naquela tarde. Nem na tarde seguinte. No terceiro dia arrombaram porta da pequena casa na qual a velha morara nos últimos cinquenta anos, mas ela não estava lá. A cidade toda vestiu-se de preto naquela semana.
E o tempo passou mais, e a história da louca do cáis foi contada de geração em geração.
Diziam, por fim, que na tarde daquela tempestade, algumas pessoas viram um pequeno ponto de luz no mar aproximando-se do porto e que o barco de seu marido finalmente conseguira voltar para que ele pudesse buscá-la.



Carl Bloch "Menina no cais" (1885)
Baseado livremente na música "En el muelle de Sán Blás", do grupo Maná

domingo, 11 de janeiro de 2009

Nos túneis...

Eram sete horas da manhã quando aconteceu. Os vagões, lotados de pessoas, corriam os túneis escuros sem qualquer desvio dos procedimentos habituais. Vários vigilantes do metrô, trajando suas rotineiras fardas negras caminhavam por entre a multidão, preparados para coibir qualquer tumulto que pudesse acontecer.

- Central, três estações para o fim do meu turno, o Garcia já está na plataforma? - questionou o homem que ocupava a claustrofóbica cabine de controle de um dos trens.

- Tudo certo Jorge, o Garcia já está te esperando na plataforma. - respondeu uma voz feminina bastante metalizada por conta do equipamento antigo da cabine - Não! Espera! Quem está com você ai na cabine?

Na sala da central de controle a mulher se debruçava sobre a mesa. Apoiando a mão sobre o monitor que mostrava a imagem das câmeras de segurança. As longas unhas, pintadas com um esmalte vermelho já desgastado nas pontas, batiam sobre a tela. O monitor, dividido em quatro pequenos quadros, exibia as imagens de quatro câmeras simultâneamente.

- Do que você está falando Célia? É óbvio que eu estou sozinho na cabine. - respondeu Jorge, já acionando o sistema de freios para a chegada à estação na qual trocaria de turno.

- Não, eu vi. Quando seu trem passou na A8, tinha alguém em pé do seu lado.

- Célia! Para com isso, estou te falando que eu estou sozinho aqui! Você dobrou seu turno pra cobrir a Regina hoje?

- Não, eu entrei não faz meia hora.

O trem chegou a estação. Jorge cumprimentou Garcia como habitual. Ambos ficaram algum tempo à porta da cabine do vagão, observando as pessoas entrarem nos vagões, que iam abarrotados de gente. Antes de sair da plataforma Jorge ainda teve tempo de rir vendo Garcia dar uma piscadela pra uma estudante que entrava na última porta próxima à cabine.

Célia levantou-se de sua mesa. Segurou o grande copo de café que estava apoiado sobre alguns guardanapos e saiu em direção ao corredor. Um jovem de cabelo estilo militar ocupou sua cadeira, afastando o guardanapo com uma marca circular de café que sobrara na mesa.

- Volto em quinze minutos. Só vou ao banheiro e pedir pro pessoal da segurança recuperar uma imagem pra mim. - disse, dirigindo-se ao jovem que agora ajeitava o fone de ouvido sobre a cabeça.

O corredor que dava para os banheiros e para a sala de segurança era opressivo. As paredes pintadas de bege apresentavam grandes manchas de mofo, devido a quase nenhuma circulação de ar e incidência de luz. Ainda sim, Célia caminhava tranquilamente.

- Pode entrar Célia. - gritou uma voz masculina vinda de uma sala a direita.

- Como você sabia? - questionou Célia rindo.

- O que? Que era você?

- Isso.

- Você já ouviu o barulho que seu saltos fazem nesse corredor?

- Ahh. - disse rindo - Marcão, não posso ficar muito tempo aqui, deixei o estagiário sozinho lá na sala.

- E por que você fez isso?

- Tem como você recuperar uma imagem da A8 pra mim?

- A que o fantasma aparece?

- Como assim?

- Olha isso. - disse, apertando um dos quatro grandes botões vermelhos em sua frente. - Apareceu pela primeira vez duas semanas atrás, na C1. A Olga que percebeu.

O monitor a esquerda deles mostrava um homem andando pelo escuro túnel do metrô. Só era possível perceber sua presença devido a luz do vagão que chegava.

- Na verdade, ela pensou que fosse acontecer um acidente. Mas o vagão passou sem perceber nada. Ai ele apareceu na A7, coincidentemente também foi com a Olha. - disse, apontando para a imagem.

O homem agora estava sentado num dos vagões. A perna direita cruzada sobre a esquerda, as duas mãos paradas sobre a canela. Esperava a próxima estação.

- Tá, mas o que que tem demais nisso. Pode ser mais um passageiro. - disse Célia, passando a mão sobre o cabelo escovado da noite anterior.

- Seria normal se essa imagem não tivesse sido capturada as 4:30 da manhã. Estavamos apenas fazendo a vistoria padrão dos trilhos e mais nenhum passageiro estava no metrô.

- Não poderia ser alguém que ficou para trás?

- Em vinte anos que eu trabalho aqui, nunca, ninguém ficou para trás. Mas calma, tem mais essas na C3 e na B9. - na imagem, o homem estava em pé, ao lado do técnico que ocupava a cabine de controle do vagão. - Eu gosto dessas duas imagens. A C3 pegou a cabine dianteira, e a B9 a cabine traseira, do mesmo vagão. Com uma diferença de menos de 10 segundos entre as duas imagens.

- Mas, vocês não fizeram nada ainda? - perguntou Célia alisando o braço esquerdo com os dedos. Os pelos de seu braço estavam arrepiados.

- Bom, fizemos. Olha isso. - disse ele apertando agora um dos botões azuis e pausando a imagem no exato frame em que homem olhava para a câmera.

Célia pôde observar melhor o homem. Trajava uma calça jeans surrada e um moletom cinza. O capuz encontrava-se abaixado, caído sobre as costas. A mulher chegou novamente com o rosto próximo a tela, apertando os olhos como se tentasse enxergar longe.

- O rosto. Não tem rosto! - disse com a voz alteradamente mais alta.

- Exatamente. Na verdade, tem rosto, mas a câmera distorce a imagem exatamente sobre o rosto do nosso fantasma. Em todas as aparições. Já mandamos as imagens para um laboratório examinar.

Conversaram mais alguns minutos. Célia despediu-se rindo, esquecida das estranhas imagens que tinham acabado de ver. Marcão tinha acabado de convidá-la para um jantar. Voltou rapidamente para sua sala, parando apenas no banheiro.

O dia correu normalmente. Seu turno havia acabado e ela passava os controles da mesa para Olga, que pegaria o turno das duas da tarde até o começo do turno da noite. De repente, Marcão entrou correndo na sala sacudindo uma folha.

- Pelo amor de Deus, Célia! Olha isso e fala que eu não estou ficando louco. - disso ele arfando, estendendo a ela uma folha na qual podiam-se ver os mesmos quatro quadros que os monitores de segurança mostravam.

- Você só pode estar de brincadeira. Ele não pode ser o fantasma. Você sabe que o ... - a frase foi cortada por um grito agudo que cruzou a sala.

Olga gritava desesperadamente, olhando para os três monitores a sua frente. Neles, via-se uma pequena aglomeração no lado da cabine dianteira de um dos trens parados na plataforma. Os alarmes do metrô soaram.

- Eu achei - disse Olga soluçando - eu achei que fosse o fantasma. Eu não avisei o controlador do trem, eu achei que fosse só o fantasma!

As imagens na tela ficavam um pouco mais compreensíveis conforme os vigilantes tiravam a multidão das proximidades do vagão. Um homem, trajado de jeans e moleton cinza havia se jogado na frente do vagão enquanto ele passava pela plataforma. Célia soltou a folha que segurava e cobriu os olhos, chorando copiosamente.

A folha girou duas vezes no ar e caiu no chão, com a cópia dos quadros da câmera de vigilância virados para cima. Olga olhou para o papel e gritou novamente, observando estarrecida que a imagem do fantasma, depois de limpa pelo laboratório, na verdade mostrava o rosto do controlador de trens do turno da manhã, Jorge.