A roupa estava separada sobre o sofá da sala. No começo tinha sido terrível habituar-se a tirar a roupa do quarto para não acordar as crianças, mas depois de um mês isso já havia se tornado uma rotina que não o incomodava mais.
- Bom dia, mãe. - disse em um tom de voz ainda baixo.
- Bom dia, meu filho. - respondeu a mulher à beira do fogão. Ela esquentava água numa leiteira já meio enegrecida pelo fogo e pelo tempo. Usava uma saia verde já bastante gasta e uma camiseta com propaganda de um candidato nas eleições de seis anos atrás.
Simultaneamente, mãe e filho fizeram o mesmo movimento com a mão. Ela, ao desligar o fogo; ele, ao girar a maçaneta da porta:
- Não vai tomar o café hoje, Gilmar? - perguntou a mulher, segurando a leiteira com um pano de prato e virando-a sobre o coador preparado com o pó de café.
- Hoje não, Dona Zuleica. Quero chegar logo lá na empresa. - respondeu o rapaz, já com a mochila nas costas e metade do corpo do lado de fora da pequena casa.
- E porque essa pressa toda?
- É que hoje é dia de pagamento, mãe. Meu primeiro pagamento.
- Bom trabalho então. Tenha um bom dia! - respondeu ela, ouvindo a porta fechar às suas costas.
Enquanto observava o pó de café ceder ao calor da água fervente não pode deixar de pensar no quanto estava feliz. O menino era muito novo ainda. Só dezesseis anos. E tinha optado trabalhar por conta própria para ajudá-la. Depois de tudo que ele passara com o pai, antes da cirrose, e depois com o irmão mais velho, antes da cadeia.
Na rua, Gilmar esfregava os braços contra o corpo. A camisa de algodão azul clara não era exatamente quente, e a malha que a cobria também não segurava o forte vento que cortava o ponto de ônibus. Tinha ouvido numa televisão, ao passar em frente a padaria, que era uma das manhãs mais frias do ano. E ali, naquele ponto, graças a arquitetura dos barracos se lançando uns contras os outros, e todos contra a rua estreita, o vento corria canalizado, diminuindo ainda mais a sensação térmica.
Entrou no ônibus cumprimentando motorista e cobrador. Conhecia ambos, já que pegava a mesma linha, no mesmo horário há um mês, exatamente. Sentou-se num dos bancos da parte traseira, de onde podia observar cada um dos passageiros que entravam até que o ônibus ficasse lotado. Uma coisa comum a quase todos passageiros chamava sua atenção: os fones de ouvido. Quando o pai quebrou o rádio de pilha que tinham em casa, cinco anos atrás, ele prometeu que daria um desses "trecos de enfiar na orelha" pro filho, mas veio a doença. Desde então ficava observando os modelos que as pessoas usavam. Fios longos, curtos, brancos, pretos. Esses dias tinha visto, inclusive, um sem fio!
Desceu com alguma dificuldade do ônibus, espremendo-se entre as pessoas. Olhou no relógio de pulso, comprado em um camelô. Cumprira sua meta, chegar meia hora antes no trabalho. Olhou parao grande prédio, com seus vidros negros, e entrou. Tirou do bolso o crachá novo - tinha trocado o provisório por este há apenas 4 dias. Desceu as escadas e foi direto para a sala do cordenador do programa dos aprendizes.
- Bom dia, Seu Carlos. - cumprimentou, efuzivo.
- Bom dia, Gil. Chegou mais cedo hoje né? - respondeu o homem, ocupando quase toda a sala.
- Só um pouco. Pequei pouco trânsito, Seu Carlos.
- Que bom, Gil. Melhor mesmo, assim eu já te entrego o seu cheque e você se livra da fila que me atrapalha a vida todo dia dez. - disse o homem abrindo a gaveta da mesa a sua frente. - Um mês já! Tá gostando do trabalho?
- Tô sim, Seu Carlos. O pessoal aqui da empresa tá me ensinando um monte de coisas. - respondeu o garoto.
Carlos percebeu que ele queria dizer alguma coisa mais, mas parecia escolher as palavras certas.
- Desembucha logo, filho. O que você quer?
- Têm como o senhor me dar uma carta, alguma coisa com o quanto eu recebo seu Carlos? É que hoje eu vou passar numa loja lá perto de casa, pra comprar um MP3, e eles falaram que querem uma carta daqui pra poderem parcelar pra mim. - disse o rapaz, acanhado.
- Mas é lógico, Gil. Peço pra Renata fazer um holleritizinho pra você hoje mesmo. Passa aqui na hora do almoço.
- Obrigado, viu Seu Carlos.
Por volta das quatro horas, quando ia embora todos os dias, passou novamente na sala do Senhor Carlos, pegou o hollerith prometido e saiu do prédio. No ônibus, muito mais vazio devido ao horário, leu e releu o papel impresso com seu salário. Sorriu. Deu sinal para o motorista parar o ônibus, cerca de seis pontos antes daquele próximo a sua casa.
Entrou na loja, que ocupava quase toda a esquina. O atendente, um homem magro e já meio calvo, o abordou logo na entrada. Aquilo parecia o paraíso para Gilmar. Eram tantos modelos e cores. No fim, escolheu um dos que tinha o fio branco. Sempre tinha achado os de fio branco mais bonitos. Não sabia muito bem o porque, mas o vendedor ainda conseguiu fazer um preço especial para o modelo que já vinha com rádio embutido, ia pagar só quinze reais a mais, por ele. Ainda na porta da loja tirou o aparelho da caixa. Com as mão tremendo de alegria encaixou o fone no aparelho e ligou-o. Sintonizou numa das estações que se lembrava do número e sorriu. O som era claro e tocava uma das músicas que ele mais gostava. Aumentou o volume no máximo, para ver até onde o aparelhinho alcançava. Enfiou a caixa e outros pequenos plásticos na sacola e pisou na rua para atravessá-la, de volta ao ponto.
Com o telefone na mão, Dona Zuleica soltou o copo de suco de goiaba que segurava. Ao se espatifar no chão, o líquido escorreu vagarosamente pelo chão torto e empoçou-se num canto da sala. Também vagarosamente escorria o líquido vermelho contra o asfalto. O ônibus estava parado poucos metros a frente, e a multidão aglomerava-se.
- Acho que ele não ouviu a buzina. - disse o motorista, olhando para o corpo estendido próximo a sarjeta. Podia-se escutar o som alto que vinha dos fones de ouvido brancos largados sobre a poça vermelha.
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3 comentários:
Meu fone de iPod é branco, Celso. Espero que não esteja profetizando alguma coisa.
Good story.
Celso... não vou mais ouvir música enquanto estiver caminhando na rua..
Bjus..
O Ministério da Saúde adverte.
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