segunda-feira, 29 de março de 2010

Lembranças vivas

Com a mão levemente trêmula, segurava a xícara enquanto observava a pequena menina beber seu refrigerante de cor escura. Estava sentada em um cadeira de balanço de madeira clara, talvez cerejeira, que constrastava com o restante da ampla biblioteca. As estantes de livro ocupavam duas paredes opostas, desde o chão encarpetado da sala até o teto. As portas que davam para o cômodo estavam semi-abertas e o vento que passava no corredor fazia um assovio ora agradável, ora um pouco assustador.

- Vovó, a senhora prometeu que ia me contar como a senhora conheceu o vovô. - disse a pequena garota, sentada com as pernas cruzadas sobre a grande cadeira de madeira posicionada ao lado da mulher.

Antes de começar a história, olhou nos olhos da menina e sorriu. Engraçado como ainda não gostava de ser chamada de vovó. 'Acho que sempre fui vaidosa demais para aceitar esse título', pensou ajeitando rapidamente o coque pelo reflexo na janela atrás de sua cadeira, e voltou-se para a menina;

- Bem, minha querida. Você se lembra da história que lhe contei sobre como eu fui a única de minhas irmãs a terminar o colégio e ir para uma faculdade?

- Claro que lembro vovó. - respondeu a pequena - Aliás, já contei pra senhora que eu decidi que quando eu crescer vou estudar a mesma coisa que você?

- É mesmo, minha pequena? Então você também vai ser professora de história? - perguntou a mulher bebericando o chá.

- Não! Eu vou ser historiadora, igualzinho a senhora falou que queria ser. Assim, eu acho legal dar aulas, mas só quando eu estiver bem velha. No começo eu quero viajar... viajar e estudar tudo.

A senhora sorriu, observando pela janela atrás da menina a chuva que caía:

- Então é melhor você começar a guardar dinheiro amanhã! - disse rindo - Eu tive que desistir porque não tinha tanto dinheiro assim, só para viajar e estudar.

- Eu sei, mas eu vou vender limonada durante o verão todo também. E acho que ainda vou vender mais alguma coisa, assim eu consigo mais dinheiro do que a senhora conseguiu e aí eu vou poder viajar.

- Muito bom! Ótima idéia! Mas voltando ao meu casamento, quando estive na faculdade, tive um professor pelo qual eu era apaixonada. Eu o achava lindo, bem mais velho que eu, com um lindo cabelo grisalho.

- Ah vovó. E desde quando cabelo grisalho é lindo? Fica parecendo uma cabecinha cheia de flocos de neve! - interrompeu a menina rindo.

- E você não gosta de brincar na neve? - continuou bem-humorada - Pois bem, eu ia em todas as aulas, frequentava o grupo de estudos coordenado por ele, resumindo, era a aluna mais aplicada que um professor poderia ter. Em pouco tempo ele sabia quem eu era. E melhor, sabia que eu era inteligente e louca por ele.

Um brilho de um raio entrou na sala, deixando as duas sem fala por alguns instantes. Quando a luminosidade diminui a senhora retomou a fala:

- Mas, naquela época era simplesmente inaceitável que um professor e uma aluna namorassem. Mesmo que eles se amassem muito.

A menina deu o último gole e colocou o copo sobre a mesinha de apoio mais à esquerda:

- E o que vocês fizeram? A senhora não desistiu por causa disso, né? Quero dizer, depois de ter praticamente fugido de casa pra fazer a faculdade, namorar escondidinho não era nada pra você!

Olhando para o desenho de dois pássaros azuis na xícara que acabara de pousar sobre a mesinha da direita a mulher riu:

- Eu não precisei fazer nada, na verdade. Quando percebemos que nós teriamos problemas com a direção da faculdade ele simplesmente pediu demissão para podermos ficar juntos.

- Ai, que lindo! E ai vocês viveram felizes para sempre?

Outro raio iluminou fortemente a sala. Na verdade, este foi bastante providencial, uma vez que a senhora precisou de alguns segundos a mais ensaiando uma voz um pouco menos embargada e mais alegre.

- Mais ou menos, minha querida Ana. Vivemos os melhores momentos da minha vida, por cerca de dez anos. Mas então ele pegou um avião para um seminário numa faculdade na Inglaterra e o avião nunca chegou no destino.

Dessa vez foi a menina que ficou calada. Desdobrou os joelhos e soltou as pernas balançando um pouco a cadeira, acompanhando o movimento da avó:

- E a senhora ficou muito triste? Quero dizer, a senhora era nova ainda, podia ter casado de novo.

- Eu nao quis, senti que ele havia completado de tal forma a minha vida que eu sabia que ele estaria sempre presente. Casar de novo seria muito injusto, na verdade - disse rindo levemente - o novo marido seria sempre pior do que ele.

- Entendi! Acho muito bonito isso vó. Quero dizer, a senhora ter vivido um amor tão grande que bastou pra vida toda. Espero que um dia eu encontre alguém assim!

- Tenho certeza que você irá! Tenho certeza absoluta.

As duas portas da biblioteca se abriram.

- Com quem a senhora estava falando, Dona Ana? - perguntou a enfermeira carregando uma cadeira de rodas.

- Estava só relembrando alguns bons momentos, Maria, comigo mesma!

A enfermeira ajeitou a senhora na cadeira e a levou devagar até a porta. Enquanto era carregada, a senhora olhou para a meninha, que do outro lado da sala saia de mãos dadas com a enfermeira que também havia entrado pela outra porta e piscou com um olho só, sorrindo. A menina abanou a mão alegremente de volta.
Antes de apagar a luz do cômodo a enfermeira ajeitou o uniforme no grande espelho que forrava toda a parede esquerda, dando a impressão de grandeza para a pequena biblioteca.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Sinal dos tempos

'1980'

- Dona Eugênia, por favor. - disse o chefe em tom alto, sentado a mesa.

A senhora entrou na sala e ajeitou o paletó do terno marrom, pendurado no cabideiro ao lado da escrivaninha de mogno vermelho. Tinha cerca de 60 anos, cabelos grisalhos presos em coque.

- Pois não, sr. Edgard? - respondeu a mulher. Sua voz tinha uma linha de rouquidão trazida pela idade.

- A senhora já pôde verificar a correspondência do escritório? - continuou o homem, tomando o cuidado de olhar a senhora nos olhos enquanto falava, para auxiliá-la com o pequeno problema de audição que se manifestara há alguns meses.

- Sim, Sr. Edgard. Cá estão! - disse Eugênia, estendendo dois pacotes de envolopes sobre a mesa do patrão. A pilha de cartas da esquerda tinha os envelopes abertos e as correspondências presas por clipes em seus respectivos envelopes; o pequeno monte da esquerda tinha as cartas completamente seladas. - Como o senhor já está acostumado, as cartas endereçadas ao ofício estão organizadas por ordem de relevância do assunto, as enderaçadas ao senhor, especificamente, estão separadas neste outro monte.

- Muitíssimo obrigado, Eugênia! Não sei como eu poderia me organizar sem esse cuidado todo da senhora. Aliás, pode-me auxiliar em uma outra tarefa?

- Com certeza, diga-me o que precisa.

- Vou ditar uma carta, gostaria que a senhora a datilografasse.

- Um minuto, vou buscar a máquina. - disse já caminhando em direção a sua mesa, na ante-sala. Apesar da idade, caminhava rapidamente, e o peso da máquina de escrever parecia bem menor do que realmente o era em sua mão. Já sentada na pequena bancada ao lado da mesa do chefe, esperou que ele pigarreasse antes de começar:

- Caro José. O relatório que me enviou esta semana estava bastante completo e facilitou-me sobremaneira na composição da apresentação que usarei na próxima reunião do Comitê, segunda-feira vindoura. Gostaria de convidar você, sua mulher e suas crianças para um jantar em minha casa no segundo dia do próximo mês, por volta das 18h. Será uma honra recebê-lo, especialmente porque estou certo de que esta licitação será nossa graças ao seu trabalho. Peço apenas que confirme sua presença com minha secretária, Dona Eugênia, até o próximo sábado. Atenciosamente, Edgard Carvalho."

- Com a licença que me é devida, Sr. Edgard, mas o senhor está mesmo tão confiante de que venceremos esta licitação? - perguntou Eugênia, enquanto retirava a folha recém-escrita da máquina e anexava-a a um envelope em branco que repousava ao lado.

- Muito confiante! O trabalho deste jovem foi impecável! Ah, antes que me esqueça. Na lista de lembranças de final de ano que pretendemos enviar aos fornecedores, favor retirar o nome da W.M.Y., infelizmente vou rescindir o contrato com eles daqui algumas semanas e acho que não seria de bom tom enviarmos mimos de Natal.

- Com certeza, Sr. Edgard. - respondeu rapidamente a senhora, andando a pequenos passos rápidos de volta a sua mesa. Antes de sair, fechou a porta do chefe cuidando para não batê-la.

Edgard ficou algum tempo mirando a janela ao longe, depois voltou a cabeça para o jornal que ainda não terminara de ler sobre sua mesa.

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'2010'

- Sheyliane! - gritou uma voz masculina - Sheyliane, porra, porque você nunca tá na sua mesa?

Uma jovem loira entrou na sala esbaforida. Batia a mão sobre a blusa, deixando algumas migalhas de pão cairem no interior da sala. Tinha no máximo 21 anos, unhas pintadas de vermelho intenso.

- Desculpa chefe, tava comendo um lanchinho e não ouvi você berrando. Pode mandar que eu já cheguei!

- Você já abriu meus e-mails hoje? Tô com um problema de acesso aqui nessa merda de computador. - respondeu o homem, olhando para a tela azul com letrinhas cinzas.

- Vixe Jesuis! Esqueci de tudo. Dá cinco minutinhos que eu já faço isso, Mau.

- Vai logo!! E para de me chamar de Mau. Uma hora você esquece e me chama assim na frente da minha mulher! É Maurício, Sheyliane, Maurício!

- Ai, desculpa!

- Anda, vai, vai!

Quase quinze minutos depois Maurício ouviu o som inconfundível do salto da jovem aproximando-se da porta de sua sala.

- Pronto chefe! Tudo lidinho. - a loira olhou para a tela do computador, que agora funcionava - Ah! Voltou né? Então, eu marquei com aquela bandeirinha vermelha os assuntos importantes, o que eu achava que não prestava eu joguei pra lixeira. Ah! Tem também um e-mail da sua mulher. Ele tá marcado como lido aí porque eu cliquei errado, mas o senhor não leu não.

Maurício olhou feio para a secretária, que voltou a falar antes que ele pudesse recriminá-la.

- E olha, é bom o senhor ligar logo pra bruaca, que pelo jeito o bicho tá pegando pro lado do senhor viu!

- Ai Sheyliane, eu só não te demiti ainda porque tenho preguiça de entrevistar outra viu! Vai, vai, sai da minha sala! Vou terminar um e-mail aqui e vou te enviar. Quero que você revise o texto com o corretor do Word e envie pro Zézão da Contabilidade.

- Sim senhor, chefinho! - respondeu, rodando os pés sobre os saltos e saindo rebolando em direção ao corredor.

Enquanto a porta batia estrondosamente, Maurício digitava displicente em seu teclado: "Zé! O seu pdf foi foda! Me salvou! O ppt que eu fiz de madrugada pra reunião de hoje a tarde ficou bem bom! Passa lá em casa sabadão pra tomar umas. Certeza que os gringos vão escolher a gente agora!". Nem leu o que havia escrito e enviou para a secretária. Esta, por sua vez, apertou a tecla de "Forward" digitando o endereço do tal Zé da Contabilidade, sem ao menos se dar ao trabalho de bater os olhos sobre o texto do patrão.

Alguns minutos depois a porta do corredor se abriu, deixando ver a cabeça de Maurício por entre a fresta.

- Sheyli!!! Lembra de depois deletar o dono daquela merda de W.M.qualquer-coisa do meu Facebook. Ah, e bloqueia ele no meu msn também! O cara é um porre!

Bateu a porta e voltou a sua mesa:

- Porra! Travou de novo!

Voltamos com nossa programação normal



Senhores telespectadores, gostariamos de informar que tivemos um pequeno problema técnico que já foi solucionado.
Voltamos agora com a nossa programação normal!

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Ligações Futuras

A estrutura de ferro pintado de branco das mesas parecia leve, e ornava perfeitamente com os guarda-sóis rosa e laranja que se colocavam aqui e alí entre as mesas. O café não estava completamente cheio e os garçons andavam sem muita pressa por entre os clientes sentados. O olhar de Marina parecia vago quando percebeu uma mão acenar a centímetros de seu nariz:

- Ei, Má! Acorda!

- Que foi, tô aqui Jú.

- Não tá não, você estava muito, muito longe.

- Ai Jú, você sabe que eu não tô bem. Ainda to sentindo muita falta do Pedro.

- Pelo amor de Deus, mulher! Faz três meses já, desencana disso.

- Primeiro, você sabe que eu não acredito em Deus. E segundo, eu tento Jú, eu juro que eu tento. Mas até esse café me lembra ele.

- Também pudera, monga, vocês dois vinham aqui dia sim, dia não.

- Monga é a sua... - Marina parou a frase no meio e enfiou a mão na bolsa - Espera um pouco, acho que meu celular está tocando.

Depois de tirar um kit de maquiagem, quatro cores diferentes de gloss, uma agenda e uma carteira rosa, a jovem achou o celular, que agora vibrava em sua mão. Antes de atender, olhou para o visor externo:

- Ai pode ser o Pedro! - disse Marina, soando como uma criança vendo um pacote fechado de presente.

- Como assim "pode ser", o nome dele não aparece aí no visor? - respondeu a outra, sem se mexer da cadeira.

- Não, eu apaguei o telefone dele. - replicou novamente Marina, rindo, enquanto lia em voz alta o número para ver se a amiga reconhecia.

- O sua lesada! Esse número que você falou é do seu celular!

Marina não respondeu, já havia aberto o celular e acabara de encostá-lo na orelha.

- Alôu! Isso, é Marina. Quem fala? QUÊ? - de repente, ficou pálida.

Afastou o celular da orelha e leu novamente o número para si mesma. Apertou o botão de viva-voz, para que a amiga pudesse ouvir.

-Alô, Marina.

- Estou... estou aqui. Você pode me repetir quem você é por favor? - disse, olhando para Juliana e apontando para o celular como se um inseto fosse voar de dentro dele ao invés da resposta.

- Já te falei Marina. Isso pode parecer meio estranho, mas eu sou você! Na verdade eu sou você daqui vinte e três anos.

- Isso não é possivel! - disse Juliana em voz alta, soltando-se contra o encosto de costas da cadeira.

- Olha, a Jú tá aí comigo? Nossa, já sei, vocês estão no Café? Aquele das mesinhas brancas? Eu lembro desse dia... Aii, como chamava, saco. Aproveitem esse lugar, ele fecha em menos de um ano.

- Ai Má, é sua voz mesmo. E o seu jeitinho de falar no celular.

- É... mas... o que você quer comigo, digo, com você. COM NóS, sei lá! - interrompeu Marina, fazendo sinal de silência para Juliana.

- Bom, tô te ligando porque minha terapeuta disse que seria o melhor a fazer. Depois de algumas sessões ela conseguiu achar esse aninho de sofrimento no meu passado e achou melhor dar uma ajudinha nele. Então resolvi te contar que terminar com o Pedro foi a melhor coisa que você fez, mas nós - digo, eu e você, ou só eu - sofri demais porque não sabia que tudo daria tão certo um tempinho depois.

- Você quer dizer que...

- Quero dizer que você não precisa ficar sofrendo mais. Todas as decisões que você tomou foram ótimas. Nossa vida não podia estar mais perfeita. O recado é esse: não mude nenhuma das decisões que você vai tomar, você acertou toooooddas! Lindona, preciso desligar porque você não imagina como fica caro ligar pro passado.

- Não, espera. Isso só pode ser uma brincadeira de mal gosto, você não disse se. - o telefone ficou mudo e a ligação caiu.

- Meu Deus Má, você é uma mão-de-vaca até no futuro. Desligou assim, na nossa cara, só pra não pagar caro!

- Meu, não sei o que fazer!

- Como assim, não sabe?

- É, tava pensando em voltar com o Pedro. Mas to com uma tremenda dúvida. E eu no futuro disse que terminar com o Pedro foi a melhor coisa que eu fiz, e que tudo que eu decidi foi perfeitinho. Agora... o que que eu decidi? Voltar ou não com ele?

- Ai, que papo de louco. Meu, você não acreditou nessa história de ser você no telefone?

- Ahhhh, e você não acreditou?

- Claro que não, monga!

- Aham, sei. Então porque você falou que era meu jeito de falar?

- Porque sim, Má. Sei lá, pode ser o Pedro te zoando com um programa de computador.

- Ai Jú, não tá me ajudando nada assim. Vai, finge que você acreditou. O que você faria?

- Bom, vamos lá. Se ela falou que você acertou em tudo que você decidiu, e você, antes da ligação, tava querendo voltar com o Pedro, volta logo!

- Mas porque ela falou que eu sofri um ano. Faz só três meses que nós terminamos.

- Ai Má... ela falou um ano porque você é exagerada mesmo! Sempre foi! Volta logo com o Pedro.

Alguns minutos de conversa depois Marina já tinha ligado para o ex-namorado e pedido para ele encontrá-la no café em que estavam.
Quando ele chegou Juliana já tinha ido embora, como havia combinado com a amiga. Os dois conversaram quase uma hora, e quando levantaram da mesa já estavam de mãos dadas. O sorriso de Marina cobria-lhe o rosto todo. Seu eu futuro estava certa, pensou, não podia estar mais feliz.
Pagaram a conta e saíram do café. Antes de atravessarem a rua Marina virou-se para Pedro. Beijou rapidamente, com risinhos, e tornou a virar o corpo e marchar em direção à rua. Um carro em alta velocidade cruzou a rua no mesmo momento.

- Saco! Ela entendeu tudo errado! - disse a Marina do futuro e deixou de existir.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Síndrome

Nos mudamos para Cap. Grass há mais ou menos três semanas. A cidade é bem pequena, acho que no máximo uns 150 mil habitantes, mas bastante agradável. Fica acho que uns setenta quilômetros de Gainesville, na direção da costa oeste. Acho que a mudança fez muito bem para a Alice, desde que nos mudamos ela parou com o comportamento estranho.
Na verdade, foi o psiquiatra dela que me disse para escrever esse diário . Segundo ele, era importante eu amarrar uma ponta da minha sanidade em algo que eu pudesse consultar sempre, para não me perder junto com ela. Na verdade eu achei essa conversa uma tremenda besteira, mas como a mudança foi idéia dele e parece ter funcionado não vi problema nenhum em fazer o que ele disse.
Os Wilson, nossos vizinhos nos chamaram para um churrasco na piscina deles no próximo sábado. A Alice ficou empolgada para ir mas eu não tenho certeza se é uma boa idéia. Vai que eles convidam muitas pessoas. O problema da Alice começou justamente numa festa lotada de gente desconhecida.

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Dezenove dias. Somente dezenove dias de tranquilidade. Sabia que não deviamos ter ido na festa. A comida estava ótima, os hamburgueres que o John serviu estavam no ponto mas, de fato, eles chamaram mais gente. Acho que eram dez ou quinze pessoas no máximo. A Alice não disse nada na hora, mas quando chegou em casa... Vou tentar reescrever o diálogo, assim eu posso mostrar para o dr. Bleuler:

- Você tinha ido embora. Tinha ficado em New York.
- Como assim, babe? Do que você tá falando.
- Já te falei para não me chamar de "babe". Só o Bob pode me chamar assim.
- Mas... eu sou... eu sou o Bob querida. Seu marido!
- Não é! Eu sei que não é! Você é igual a ele. Muito igual. Mas eu sinto, eu posso sentir que você não é ele. SAÍA DAQUI!! SAÍA DA MINHA CASA AGORA!!

Foi mais ou menos nessa hora que ela arremessou o vaso que havíamos ganhado dos Wilson contra da parede atrás de mim. Precisei sair de casa, como vinha acontecendo nos últimos meses. Quando ela dormiu eu dei o remédio.
Meu Deus! Eu achei que esse pesadelo tivesse parado.

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As coisas pioraram na última semana. Não fiz as contas direito mas me parece que ela passou mais tempo confusa do que sã dessa vez. Não aguentei, liguei para o Centro Neurológico em NY de novo. A idiota da recepcionista disse que nenhum dos médicos responsáveis poderia me atender pelo telefone... de novo. Acabei ligando para o Bleuler e ele insistiu que eu ignorasse os surtos e tentasse manter a vida nos trilhos, para que ela se acostumasse novamente com a minha face. Como assim, se acostumar com a minha face?
Mesmo assim comecei a ler o livro que ele me indicou. Só consegui começar porque os remédios que ele passou para acalmá-la basicamente a fazem dormir o dia todo. Assim até eu me acalmaria. O livro é bastante didático, e isso é bom. Ele consegue me explicar alguns detalhes que o Bleuler sempre considerou ponto comum de entendimento. O conceito da tal propagnosia espelhada que ele sempre falou é bem simples: o cérebro mantém a capacidade de reconhecer formas e rostos, mas perde a capacidade de associar sentimentos pregressos a ele. Grande merda acadêmica; é muito fácil escrever teoria quando nunca se passou por isso.
Esse é o problema dos médicos. Eles não se envolvem, eles não sabem realmente o que é sentir. Minha mãe foi enfermeira em um hospital público em Vermont. Lembro até hoje dela chegar em casa chorando. Eu devia ter uns nove ou dez anos na época, e perguntava se alguém tinha morrido naquele dia. A resposta era quase sempre a mesma: "Não é preciso que alguém morra para que eu sinta a dor". Os médicos não sentem a dor, a própria Alice não sente a dor. Eu sinto! Eu sinto a dor por nós todos.

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Parece que os remédios começaram a fazer efeito. Ela quase não se confundiu essa semana. Só tem um problema, ela passa metade do tempo dopada. Mal consegue falar qualquer coisa. Não quero isso para ela. Estou pensando em diminuir a dose do medicamento, sem falar com o Bleuler mesmo.

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Não, não, NÃO! Durou menos tempo do que quando nos mudamos para cá. Hoje a tarde eu estava sentado na sala quando senti a faca da cozinha entrando no meu ombro. Ela gritou que eu era um estranho tentando me passar pelo marido dela, mas que quando ele chegasse eu ia aprender uma lição. Os médicos do hospital que fizeram a sutura tentaram me forçar a registrar uma queixa contra ela na Polícia. Foi preciso o Bleuler ligar lá e explicar para eles a condição completa da Alice para que eu pudesse voltar para casa em paz. Ela já estava dormindo, mas achei melhor dormir na sala.

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Acho que a crise do último mês passou, finalmente. A Alice tem me reconhecido todas as manhãs. Ela até me levou café na cama domingo passado. Vamos ver um jogo dos Marlins semana que vem. O pai dela sempre foi fanático por baseball e ela sempre gostou de ir ao estádio lembrar dele, mesmo que não entendesse uma única regra sequer de baseball.
O problema é que eu continuo com medo. Cada vez que a Alice me olha por algum motivo eu tenho a impressão de que ela vai começar a gritar de novo. Marquei uma consulta com um outro psquiatra, para mim. Quero algum remédio para me acalmar. Tentei comprar algum tarja preta, mas os farmaceuticos certinhos desse inferno de cidade não quiseram me vender sem receita.

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Quase não consigo explicar minha alegria. Ela conseguiu passar um mês sem ter uma crise sequer. Quero dizer, alguns dias ela demorou muito mais do que uma pessoa normal demoraria para me reconhecer, mas pelo menos não tentou me matar de novo. O organismo dela começou a se acostumar com a medicação porque ela não fica mais tão dopada. Os calmantes tem me feito bem, também. Agora estou conseguindo dormir quase todas as noites.

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Agora a pouco fui escovar meus dentes e tomei um susto. Um outro homem estava olhando para mim de dentro do espelho. Parecia tanto comigo, TANTO! Mas não era eu, tenho certeza que não era eu. Acertei um soco em cheio no espelho. Eu gostava daquele espelho, mas pelo menos mandei o impostor embora, tenho certeza que mandei.


quarta-feira, 19 de agosto de 2009

The best is yet to come

** 28 de Outubro de 1964 **

"In other words, hold my hand
in other words, baby, kiss me..."


Eloise, apoiada no piano de calda de madeira escura, terminou a música debruçada sobre o rapaz que tocava o piano. Estava usando um vestido preto, que contrastava com sua pele alva e seus cabelos completamente loiros. Contudo, o jovem - de terno e gravata pretos com camisa branca - olhava mesmo era para sua boca; os lábios carnudos eram realçados por um vivo batom vermelho.

A platéia aplaudiu enquanto um ou outro homem jogava rosas brancas no palco, as quais Eloise recolheu gentilmente e as beijou. Caminhou suavemente até o jovem que havia voltado a tocar no piano e disse em seu ouvido:

- Estarei no meu camarim, passe por lá Mickey. - terminando com um leve beijo em sua bochecha.

O rapaz tocou mais três músicas até que um homem cerca de dez anos mais velho subisse ao palco carregando um saxofone. Ele usava um fraque que havia sido nitidamente cortado anos atrás, quando seu peso provavelmente era alguns quilos menor. Mike levantou-se e andou até o amigo:

- Eric, eu sei que nos tocariamos juntos as primeiras músicas mas, tem como você fazer isso sozinho essa noite? É que...
- Eloise, acertei? - perguntou o homem, já com um sorriso malicioso no rosto.
- Sim.
- Vá lá moleque, eu me viro por aqui. Mas Mike, já te falei para tomar cuidado com isso tudo. Você é novo, chegou em New York há apenas 3 meses. Não se envolva desse jeito com uma mulher quase vinte anos mais velha que você.
- Pode deixar Eric, eu sei me cuidar.
- Só não sei se você sabe cuidar de você estando com ela. - mas Mike já tinha dado as costas. Eric preparou o instrumento e soprou algumas notas como se o esquentasse para o show.

Ao descer do palco Mike recebeu cumprimentos dos homens sentados nas primeiras mesas. O salão era pequeno e forrado em madeira escura. A luz amarela pendia do teto sobre as mesas e dava um ar aconchegante ao ambiente. Especialmente em dias como aquele, em que uma fina camada de fumaça tomava todo o espaço do bar.

-- * --

- Aquela última música foi para mim? - perguntou o rapaz, entrando no pequeno cômodo que servia de camarim para a estrela do show.
- E para quem mais seria? - respondeu Eloise, com a voz docemente grave que lhe era comum.
- Não sei, você sempre anda entre as mesas flertando com os homens.
- Faz tudo parte do show, meu bobo preferido. Porque você acha que aqueles senhores trazem suas esposas a um bar pequeno e cheio de fumaça no meio de Manhattan? Para assistir ouvir algumas músicas e ir embora pensando que estão acompanhados por outra pessoa.
- Mas...
- Sem mais - retrucou, segurando o rosto do jovem entre suas mãos. Aproximando-se lentamente de Mike, beijou-lhe suavemente a boca - você sabe que não tem motivos para ter esse tipo de medo. Já te disse que estou completamente apaixonada por você, Mickey.
- Eu também, mas por favor, pare com essa história de Mickey. É Mike, e você sabe que eu não gosto disso.
- Mas eu gosto de te chamar de Mickey - respondeu movendo a cabeça ritimadamente até tocar novamente os lábios do rapaz.

Se beijaram algum tempo até que duas batidas na porta os interromperam. Eloise empurrou Mike para atrás do vão entre um mancebo com roupas e sua penteadeira. Abriu apenas uma pequena fresta. Mike reconheceu a voz de Luke, o negro que trabalhava como barmen na casa:

- Srta. Eloise, desculpe-me incomodá-la.
- Por favor Luke, não é problema algum. Diga-me, aconteceu alguma coisa?
- Não, apenas vim ver se a senhora já quer que eu a leve ao hotel.
- Sim, quero sim. Dê-me mais uns cinco minutos. Te encontro na saída dos fundos.
- Com certeza senhora, estarei te esperando.
- Obrigada Luke. Mas não se esqueça que é senhorita.
- Desculpe-me. - disse o negro, fechando a porta atrás de si, com cuidado para que não batesse.

Eloise tirou o colar de pérolas do pescoço e o colocou dentro de uma caixa preta sobre o móvel. Fez sinal para que Mike a ajudasse com o zíper nas costas da roupa.

- Obrigada. Agora vire-se, vou tirar o vestido.
- Mas nós já...
- Oras menino, deixe de ser atrevido. Se eu disse para se virar, vire-se! - respondeu rindo. Mike, contudo, obedeceu-a.
- Pronto, passe-me a minha piteira, por favor. Acho que está na minha bolsa aí nesta cadeira.

Somente depois de pegar a piteira de prata dentro da bolsa Mike virou-se para vê-la. Ela agora vestia um outro vestido, também preto com pequenas listras brancas, mas bastante mais folgado do que o do show.

- Você precisa mesmo fumar isso?
- Lógico! Não é pelo sabor, é pelo status.
- Mas ninguém está te vendo aqui.
- Você é novo por aqui. Mas eu vou te ensinar mais uma coisa sobre New York. Se você quer ser famoso nessa cidade, se quer que as pessoas te levem a sério, fume. Fume e beba whisky sempre que tiver qualquer oportunidade. Com licença, meu querido, mas tenho que ir. Luke está me esperando lá fora.

-- * --

** 08 de Novembro de 1964 **

- Não seja tolo, Brian. Eu não pediria para você me trazer a um almoço no restaurante do Ritz se eu não quisesse que as pessoas me vissem com você. - disse Eloise, segurando na mão do homem sobre a mesa.
- Então porque você esperou aquele fedelho entrar no prédio antes de descer do carro. - retrucou o homem. Tinha uma grande cara redonda, e um corpo tão grande e redondo quanto. O bigode fino que usava parecia não encaixar nos traços fortes de seu rosto.
- Porque aquele menino é meu pianista no show que faço todas as noites, e ele é apaixonado por mim. E eu nunca teria nada com um menino daquela idade. Então eu evito encontrá-lo fora do palco.

Antes que Brian pudesse responder qualquer coisa o garçom chegou trazendo os pratos que haviam pedido. O homenzarrão pediu ainda que lhe trouxesse uma garrafa do melhor vinho do restaurante.

- Ontem vi um colar e brincos de diamantes naquela joalheria na 8th Street que eram simplesmente fantásticos. Achei que ficariam perfeitos com aquele vestido vermelho que você me deu semana passada.
- Você os quer?
- Não sei Brian. Você tem me dado tantas coisas nesses últimos meses Acho que não teria coragem de aceitar mas nada de você.
- Mas eu gosto de dar essas coisas. Afinal, eu tenho que ter o direito de dar o que eu quiser para minha futura esposa.
- Claro que sim, seu bobo. Mas... - disse Eloise, com um olhar perdido pelo amplo salão do restaurante.
- Mas o que, Ellie?
- Você sabe. Eu não gosto daqueles homens que andam com você. - disse, apontando discretamente para quatro homens vestidos exatamente iguais, espalhados pelo salão.
- Por favor Eloise. Não vamos discutir isso de novo. Você sabe que quando se atua no que eu atuo nessa cidade você tem que tomar seus cuidados.
- É exatamente esse o problema, Brian. Você já tem dinheiro mais do que suficiente pra gente viver bem. Você podia parar de conviver com essas pessoas da máfia. Não sei, a gente podia se mudar de New York.

Brian olhou para os lados e segurou o pulso de Eloise firmemente:

- Nunca mais fale a palavra máfia. Nunca.
- Desculpe-me - responde, baixando um pouco os olhos - mas é que eu tenho medo que algo te aconteça.
- É justamente para não me acontecer nada que eu tomo esses cuidados.
- Posso te pedir uma coisa, então?
- Claro que sim.
- Eu aceito me mudar para a sua casa, como você havia me pedido. Mas com uma condição: seus capangas não ficam mais lá enquanto eu estiver morando com você. Você pode andar com eles pra cima e pra baixo durante o dia, mas quero eles longe de nossa casa.
- Tudo bem Ellie, tudo bem. O que eu não faço por você?

-- * --

** 14 de Novembro de 1964 **

"Don't you know little fool, you never can win
Use your mentality, wake up to reality..."


Sentada sobre o piano Eloise cantava sem tirar os olhos dos olhos de Mike. O vestido vermelho e o conjunto de brincos e colar de diamantes deixavam-na ainda mais sedutora. Depois da última música, Eloise vez o mesmo ritual de todas as noites, passando pelo beijo na bochecha de Mike e indo para o seu camarim.

- Estou com medo, Mickey. - disparou assim que o jovem entrou em seu camarim.
- Porquê? - respondeu ainda a porta, assustado.
- Não sei se você percebeu um homem que estava na platéia. Sentado numa das mesas ao fundo.
- Acho que eu vi quem era. Mas, porque você está com medo dele?
- Ele é envolvido com a máfia de New York. O Luke me disse que ele não é dos peixes grandes, mas mesmo assim é muito perigoso. E há umas duas semanas ele tem me perseguido. Vem aqui quase todas as noites, me segue nas ruas as vezes.
- Meu Deus! Você quer que eu faça alguma coisa?
- Claro que não, Mickey! Ele é um homem perigoso.
- Grande merda. Não tenho medo de ninguém. Não se ele estiver te fazendo mal.
- Por favor, Mickey. Não sei nem porque eu te contei. Não quero que você faça nada. Você é tolo, um capira do interior. Você não sabe com o que estaria se metendo. - Eloise soltou-se sobre uma poltrona de couro escuro no canto do quarto, algumas lágrimas escorreram de seu rosto.

Mike aproximou da mulher e agachou-se, abraçando-a. Ficaram naquela posição por vários minutos antes de se beijarem.

- Pode ficar tranquila, Eloise. Não vou fazer nada que seja perigoso.

-- * --

** 15 de Novembro de 1964 **

Quando Eloise chegou ao bar Eric estava no palco com seu saxofone. A casa estava cheia e a fumaça que cobria o salão um pouco mais densa, o que dificultava discernir o rosto das pessoas sentadas nas mesas mais distantes. Como de costume, Eloise caminhou vagarosamente até o bar. Mesmo estando ainda sem o vestido que usaria no show aquela noite seu andar atraia a atenção dos homens.

- Uma dose de whisky, Luke, por favor. - disse, apoiando-se no balcão do bar, ainda olhando para as pessoas nas mesas como se procurasse alguém.
- Claro, srta. Eloise.
- Diga-me uma coisa, Luke. Onde está o Mike. Geralmente ele abre no piano, o Eric costuma entrar somente depois de mim.
- Então, o menino não apareceu por aqui hoje. Até estranhei e fui ao apartamento dele, que é aqui perto, mas ninguém respondeu. A vizinha disse que ele voltou tarde da noite ontem, provavelmente depois de sair daqui, e poucos minutos depois saiu de novo.

Eloise não respondeu, apenas pegou o copo e tomou um longo gole do líquido no copo. Depois, sentou-se numa cadeira alta e começou a rodar a pedra de gelo no copo. Seu olhar ainda era perdido entre as mesas.

- Luke, você viu se um homem que sempre senta-se naquela mesa apareceu por aqui hoje?
- Quem? O Brian?
- Esse mesmo, acho que era esse o nome.
- Com certeza o Brian não veio aqui hoje. Não veio, e não vem. - disse o barman calmamente, enxugando um copo com um guardanapo branco que a pouco estava em seu ombro.
- Como assim? - respondeu Eloise subitamente, virando-se para encarar o homem.
- Pois é. Estava no jornal de hoje cedo. A polícia invadiu a casa de uns três mafiosos hoje de manhã, mas parece que quando chegaram na do Brian ele estava morto. Encontraram mais um corpo na casa, mas não divulgaram o nome.
- Que pena. Não foi bem isso que eu tinha planejado.
- Desculpe srta?
- Nada Luke, nada. Estava pensando alto. Por favor Luke, você pode pedir para alguém te substituir no bar algum tempo?
- Sim, Eloise, porque?
- Gostaria que me levasse ao aeroporto.
- Mas... o show.
- Acho que não teremos mais show essa noite.

Dois homens de terno entraram escancarando a porta do bar. Ambos analisavam o local minuciosamente. Eloise percebeu quem eram:

- Mas vamos rápido, te encontro na porta dos fundos.

Saiu rapidamente do bar e entrou pela porta que dava acesso ao seu camarim. Abriu uma grande bolsa e jogou as quatro grande caixas de jóias, os vestidos que usava nos shows e saiu caminhando a passos largos.
Como sempre, Eloise sentou-se no banco de trás do carro e pediu que Luke ligasse o rádio do carro. Depois de alguma dificuldado, conseguiu sintonizar uma estação que tocava Sinatra.

They call you lady luck
But there is room for doubt
As times you have a very un-lady-like way
of running out


domingo, 16 de agosto de 2009

Metros Rasos

Amarrou o pé esquerdo do tênis e se levantou. Apesar de colada no corpo, já estava acostumado com a roupa. Soltou os braços e os balançou, num exercício de relaxamento dos músculos. O silêncio naquele vestiário o acalmava. Pegou uma pequena imagem de sua santa padroeira e encostou sobre a boca, de olhos fechados. Vagarosamente abriu o bolso externo da mochila e a guardou. Três batidas na porta quebraram o silêncio que já durava alguns minutos.

- Alex, tudo pronto aí? - perguntou um homem de cabelos brancos e moleton parado a porta semi-aberta.
- Tá sim. To saindo. - respondeu Alex, fechando a mochila e levantando-se do banco.
- O estádio está lotado hoje. Ouvi dois voluntários, que foram numa reunião da organização hoje de manhã, falarem que é record de público.

O atleta não respondeu. Apenas acompanhou seu treinador pelo longo túnel extremamente bem iluminado que dava para o campo de provas. Olhando para a frente, tinha a impressão de que o túnel era interminável. A luz que vinha da entrada conseguia ser ainda mais forte que os diversos holofotes dentro do corredor, o que causava um certo desconforto aos olhos. Ouvia o típico som de gritos e aplausos das multidões.

Tudo acontecera tão rápido para ele. A dezoito meses atrás ele era um pedreiro no interior do estado que gostava de correr nas estradas vicinais aos finais de semana. Agora estava lá, na competição mundial de atletismo. Sediada justamente em seu país.
Quando o Marcão o viu correndo num sábado de manhã e o chamou para treinar, convite que Alex negou prontamente. O técnico precisou de 3 semanas e uma promessa em dinheiro para convencer o rapaz a aceitar a proposta. Nos meses seguintes treinou de quatro a seis vezes por semana. Achava engraçado que o técnico o forçasse a ficar na academia fazendo exercícios de peito e braços. Oras, ele precisava correr, e não levantar pesos.

Depois de cinco meses treinando foi convidado a participar do campeonato sulamericano. Ficou bem classificado, mas seu tempo não foi o suficiente para o mundial. Quatro segundos tinham tirado sua vaga. Mas era justo, o outro corredor era muito mais experiente que ele. Qual foi sua surpresa, então, quando Marcão telefonou, três semanas antes do mundial:

- Alex, tudo bem, é o Marco.
- Fala Marcão, tudo certo! Aconteceu alguma coisa? Cancelou o treino de amanhã?
- Não, na verdade aconteceu uma coisa sim. O Luis foi pego no dopping e não vai pro mundial. A vaga é sua.

Alex se deixou cair na cadeira próxima ao telefone. Mesmo com todo seu treino, as pernas falharam naquele momento. Tremia incontrolavelmente, como se seu corpo fosse sustentado por duas varas de bambu.

- É sério isso Marco?
- É sim Alex, vem pra cá agora, vamos acertar a documentação necessária e hoje a tarde a gente começa um treino mais intenso.


Finalmente alcançaram a saída dos vestiários para o estádio. Alex sentiu, por um momento, que suas pernas o deixariam sozinho novamente, tal qual no dia em que ficou sabendo que competiria no mundial. Precisou parar por poucos segundos, olhando em volta. Dalí não era possível ver um único espaço vazio na arquibancada. Ele e Marco seguiram para a área de aquecimento, onde fizeram exercícios por mais de meia hora.
Uma coisa o acalmava: a imprensa - que já fizera uma reportagem especial sobre sua história - estava bem mais preocupada em fotografar cada passo do favorito da prova, um nigeriano que Alex ainda não tinha conseguido decorar o nome.
Graças a isso, tinha um pouco mais de tranquilidade. Além do que, todos os analistas esportivos já haviam dito que a presença de Alex na prova era a maior conquista a se esperar do rapaz naquele momento, e que certamente ele seria um dos grandes nomes do atletismo nacional para o próximo mundial.

Quando representantes do comitê organizador anunciaram o início dos preparativos da prova ele despediu-se do técnico com um abraço carinhoso:

- Alex, você sabe que tudo isso é mérito seu. Confie em você mesmo, por que eu confio.
- Valeu Marcão. O mérito pode até ser meu, mas a culpa a toda sua. - disse rindo.

Deixou o casaco do moleton com um dos voluntários do mundial e dirigiu-se a sua raia. Era o único brasileiro naquela classificatória. Ao som do tiro, correu tecnicamente. Utilizava o peso de seu próprio corpo para impulsionar-se para frente. A prova era rápida o suficiente para não sobrar tempo para pensar em nada antes de cruzar a linha de chegada. Olhou ansioso para o cronômetro digital, ao lado da pista. Tinha ficado em terceiro mas somente os dois primeiros de cada bateria estavam automaticamente na final.

- Desculpa Marcão, eu sei que você esperava pelo menos a classificação. - disse Alex um pouco cabisbaixo, voltando para a área de aquecimento.
- Porra Alê, do que você tá falando. Foi seu melhor tempo! Você ainda pode pegar uma vaga na final, por tempo. - respondeu o técnico, tentanto animar seu pupilo.

Quase uma hora depois realizava o mesmo ritual feito na classificatória. O tempo tinha lhe garantido a sétima raia na final. O nigeriano corria na quarta raia. Acenou tímido para a câmera quando anunciaram seu nome. Como o estádio já gritava, Alex não percebeu uma grande alteração de ânimos do público ao ouvir seu nome.

Preparou-se na raia. Pensou na imagem da padroeira guardada na mochila. Com o tiro, disparou pela pista. Olhava fixamente para a frente, sua mente estava completamente vazia. Segundos depois percebeu os flashes dos jornalistas, que normalmente confirmavam o final da prova. Caiu de joelhos no chão, estafado. Somente então olhou para o placar digital ao lado da pista. Não conseguiu achar seu nome onde ele deveria estar, quinto, quarto, terceiro, o nigeriano em segundo...
Sentiu seu corpo ser jogado contra o chão, quando o técnico pulou sobre ele, gritando e chorando. Somente então percebeu que as milhares de pessoas no estádio gritavam seu nome. No dia seguinte, todos os jornais estavam estampados com a foto de um herói ajoelhado no centro da sétima raia.