domingo, 16 de agosto de 2009

Metros Rasos

Amarrou o pé esquerdo do tênis e se levantou. Apesar de colada no corpo, já estava acostumado com a roupa. Soltou os braços e os balançou, num exercício de relaxamento dos músculos. O silêncio naquele vestiário o acalmava. Pegou uma pequena imagem de sua santa padroeira e encostou sobre a boca, de olhos fechados. Vagarosamente abriu o bolso externo da mochila e a guardou. Três batidas na porta quebraram o silêncio que já durava alguns minutos.

- Alex, tudo pronto aí? - perguntou um homem de cabelos brancos e moleton parado a porta semi-aberta.
- Tá sim. To saindo. - respondeu Alex, fechando a mochila e levantando-se do banco.
- O estádio está lotado hoje. Ouvi dois voluntários, que foram numa reunião da organização hoje de manhã, falarem que é record de público.

O atleta não respondeu. Apenas acompanhou seu treinador pelo longo túnel extremamente bem iluminado que dava para o campo de provas. Olhando para a frente, tinha a impressão de que o túnel era interminável. A luz que vinha da entrada conseguia ser ainda mais forte que os diversos holofotes dentro do corredor, o que causava um certo desconforto aos olhos. Ouvia o típico som de gritos e aplausos das multidões.

Tudo acontecera tão rápido para ele. A dezoito meses atrás ele era um pedreiro no interior do estado que gostava de correr nas estradas vicinais aos finais de semana. Agora estava lá, na competição mundial de atletismo. Sediada justamente em seu país.
Quando o Marcão o viu correndo num sábado de manhã e o chamou para treinar, convite que Alex negou prontamente. O técnico precisou de 3 semanas e uma promessa em dinheiro para convencer o rapaz a aceitar a proposta. Nos meses seguintes treinou de quatro a seis vezes por semana. Achava engraçado que o técnico o forçasse a ficar na academia fazendo exercícios de peito e braços. Oras, ele precisava correr, e não levantar pesos.

Depois de cinco meses treinando foi convidado a participar do campeonato sulamericano. Ficou bem classificado, mas seu tempo não foi o suficiente para o mundial. Quatro segundos tinham tirado sua vaga. Mas era justo, o outro corredor era muito mais experiente que ele. Qual foi sua surpresa, então, quando Marcão telefonou, três semanas antes do mundial:

- Alex, tudo bem, é o Marco.
- Fala Marcão, tudo certo! Aconteceu alguma coisa? Cancelou o treino de amanhã?
- Não, na verdade aconteceu uma coisa sim. O Luis foi pego no dopping e não vai pro mundial. A vaga é sua.

Alex se deixou cair na cadeira próxima ao telefone. Mesmo com todo seu treino, as pernas falharam naquele momento. Tremia incontrolavelmente, como se seu corpo fosse sustentado por duas varas de bambu.

- É sério isso Marco?
- É sim Alex, vem pra cá agora, vamos acertar a documentação necessária e hoje a tarde a gente começa um treino mais intenso.


Finalmente alcançaram a saída dos vestiários para o estádio. Alex sentiu, por um momento, que suas pernas o deixariam sozinho novamente, tal qual no dia em que ficou sabendo que competiria no mundial. Precisou parar por poucos segundos, olhando em volta. Dalí não era possível ver um único espaço vazio na arquibancada. Ele e Marco seguiram para a área de aquecimento, onde fizeram exercícios por mais de meia hora.
Uma coisa o acalmava: a imprensa - que já fizera uma reportagem especial sobre sua história - estava bem mais preocupada em fotografar cada passo do favorito da prova, um nigeriano que Alex ainda não tinha conseguido decorar o nome.
Graças a isso, tinha um pouco mais de tranquilidade. Além do que, todos os analistas esportivos já haviam dito que a presença de Alex na prova era a maior conquista a se esperar do rapaz naquele momento, e que certamente ele seria um dos grandes nomes do atletismo nacional para o próximo mundial.

Quando representantes do comitê organizador anunciaram o início dos preparativos da prova ele despediu-se do técnico com um abraço carinhoso:

- Alex, você sabe que tudo isso é mérito seu. Confie em você mesmo, por que eu confio.
- Valeu Marcão. O mérito pode até ser meu, mas a culpa a toda sua. - disse rindo.

Deixou o casaco do moleton com um dos voluntários do mundial e dirigiu-se a sua raia. Era o único brasileiro naquela classificatória. Ao som do tiro, correu tecnicamente. Utilizava o peso de seu próprio corpo para impulsionar-se para frente. A prova era rápida o suficiente para não sobrar tempo para pensar em nada antes de cruzar a linha de chegada. Olhou ansioso para o cronômetro digital, ao lado da pista. Tinha ficado em terceiro mas somente os dois primeiros de cada bateria estavam automaticamente na final.

- Desculpa Marcão, eu sei que você esperava pelo menos a classificação. - disse Alex um pouco cabisbaixo, voltando para a área de aquecimento.
- Porra Alê, do que você tá falando. Foi seu melhor tempo! Você ainda pode pegar uma vaga na final, por tempo. - respondeu o técnico, tentanto animar seu pupilo.

Quase uma hora depois realizava o mesmo ritual feito na classificatória. O tempo tinha lhe garantido a sétima raia na final. O nigeriano corria na quarta raia. Acenou tímido para a câmera quando anunciaram seu nome. Como o estádio já gritava, Alex não percebeu uma grande alteração de ânimos do público ao ouvir seu nome.

Preparou-se na raia. Pensou na imagem da padroeira guardada na mochila. Com o tiro, disparou pela pista. Olhava fixamente para a frente, sua mente estava completamente vazia. Segundos depois percebeu os flashes dos jornalistas, que normalmente confirmavam o final da prova. Caiu de joelhos no chão, estafado. Somente então olhou para o placar digital ao lado da pista. Não conseguiu achar seu nome onde ele deveria estar, quinto, quarto, terceiro, o nigeriano em segundo...
Sentiu seu corpo ser jogado contra o chão, quando o técnico pulou sobre ele, gritando e chorando. Somente então percebeu que as milhares de pessoas no estádio gritavam seu nome. No dia seguinte, todos os jornais estavam estampados com a foto de um herói ajoelhado no centro da sétima raia.

2 comentários:

Clara Madrigano disse...

Fiquei esperando para ver se o Luis apareceria para enfiar um tiro no cara que roubou o lugar dele, mas não, não aconteceu, o Alex ficou vivo!

Chocada. Keep doing it.

Bruno Prado disse...

acabo de adicionar aos favoritos :D